Aaliya Saleh vive sozinha e não quereria que fosse de outra forma. Divorciada, com uma má - ou inexistente - relação com a família e sem amigos, Aaliya encontra nos livros todo o conforto de que precisa. Todos os anos, no dia 1 de Janeiro, começa uma tradução que nunca será publicada. E, agora que o novo ano se aproxima, é tempo de escolher o seu novo projecto. Mas a vida está em constante mudança e, depois de ter sobrevivido a tudo, até à guerra civil, Aaliya dá agora por si a recordar o passado, e o retrato que a memória lhe devolve não é propriamente o mais agradável...
Retrato de uma mulher em luta com o seu próprio envelhecimento, e principalmente com a memória de um passado demasiado longo, este é um livro em que sobressaem, logo à partida duas características: a primeira é a vastidão do mundo literário do protagonista, e a forma como este mundo se transmite ao leitor. A segunda é a capacidade de, num registo pausado e introspectivo, conseguir, ainda assim, manter constante o interesse pela história de Aaliya e pelo mundo que a rodeia.
É provavelmente da fusão destes dois aspectos que nasce o impacto que este livro acaba por ter: um livro que se lê aos poucos, tantas são as referências que há para assimilar, e que, contudo, nunca deixa de cativar, não só pela complexidade da protagonista como pela própria escrita, que lhe confere uma voz tão peculiar. Mas na alma de tudo estão os livros e é a visão de Aaliya da leitura e da tradução, a forma como toda a narrativa é uma viagem por mil e um mundos literários, que torna a leitura tão memorável. Seja a citação de uma outra, seja um pensamento particularmente certeiro da protagonista - "A literatura dá-me a vida e a vida mata-me." - há em todo este percurso uma estranha e fascinante harmonia, que faz com que, apesar de pausado, este seja um daqueles livros que dá gosto ler.
Mas nem só da escrita e do intrincado entrecruzar de referências surge a complexidade deste livro. Não. Também o cenário é complexo, as muitas memórias são complexas. A própria Aaliya, com o seu percurso e convicções e recordações, é uma personagem elaboradamente complexa. Mas a magia está na forma como todas estas teias intrincadas se conjugam para moldar um sentido mais amplo. A partir do percurso de Aaliya é possível desvendar o muito que tem de admirável. Das suas idiossincrasias, sobressaem as vulnerabilidades. E, do equilíbrio entre todas as suas facetas - e também das daqueles que, ao longo do tempo, cruzam o seu caminho - surge uma personagem complexa e fascinante. Como, aliás, tudo neste livro.
Não é uma leitura compulsiva. Não o poderia ser, com tantos elementos entrelaçados, com tantas pequenas coisas a alimentar o todo maior. Mas o que é, sim, é um livro memorável, maravilhosamente escrito e com uma personagem tão complexa quando a dimensão da sua humanidade. Recomendo.
Título: Uma Mulher Desnecessária
Autor: Rabih Alameddine
Origem: Recebido para crítica
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