Afastada da vida que construiu na Argentina e de volta ao Porto para desvendar os segredos de um ramo familiar de que mal se lembra, Adriana dá por si com um grande mistério nas mãos. Ficaram-lhe de herança alguns registos com pouco significado e três quadros perturbadores em que não consegue deixar de pensar. De volta à casa da família, Adriana começa a sentir-lhe os fantasmas - fantasmas que parecem colar-se mais a ela a cada passo que dá. Mas nem o desvendar do passado lhe poderá trazer a paz que procura. Pois todas as famílias têm segredos... mas os da sua são particularmente sombrios.
Sendo, como é, uma história num registo um pouco diferente do habitual na autora, uma das primeiras coisas a sobressair neste livro é a forma como diferença e familiaridade parecem conjugar-se num equilíbrio delicado. O livro é diferente - menos factos históricos, mais jornada pessoal - mas a voz continua a ser a mesma que já se afirmou nos livros anteriores. Uma voz serena, natural, que traça com a mesma mestria a intensidade dos acontecimentos e a introspecção que move os dilemas interiores da personagem. Uma voz que, contendo algo de poesia, nunca se perde, porém, em devaneios, mantendo sempre firme a corrente que prende a escrita à história que vem contar.
Mas falemos da história e da forma como esta é contada. Oscilando entre diferentes pontos do tempo, mas sempre centrada na vida e nos pensamentos (e, já agora, nas emoções) de Adriana, permite vislumbrar diferentes modos de vida e de pensamento, moldados em parte pela época em que um certo acontecimento se dá, mas também pelas repercussões desse tempo nas gerações seguintes. E, ao mesmo tempo, traça os contornos de um segredo intemporal, pois ainda hoje é possível encontrar na realidade tantos (demasiados) pontos em comum com a história dos familiares de Adriana.
É talvez esta a grande beleza da história - a capacidade de traçar as linhas de um enredo sombrio sem nunca perder de vista o que existe para lá das sombras. A história vai mais além que o segredo sinistro dos Brancos. Vive também do amor que se descobre, das relações que perduram, da capacidade de olhar para o passado e aceitar o papel que nele se teve... ou não. No fim, fica a impressão de ter percorrido um longo caminho - e, curiosamente, embora as páginas pareçam voar, tudo parece ter precisamente a medida adequada. E a história, essa, fica gravada na memória, tal como as personagens imperfeitas (muito humanamente imperfeitas, aliás) que a povoam.
Intrigante, intenso e curiosamente viciante, este é, pois, um livro que, embora num registo ligeiramente diferente, confirma a solidez da voz da autora. E, com as suas personagens peculiares, o enredo em que os grandes dramas se propagam para lá do fio do pensamento do seu tempo e as grandes revelações assustadoramente realistas, uma história que fica na memória muito depois de lida a palavra fim. Muito, muito bom.
Título: Limões na Madrugada
Autora: Carla M. Soares
Origem: Recebido para crítica
Gostaríamos de lhe deixar aqui o convite para estar presente na próxima sessão do Clube de Leitura Ler na LER, que conta com a presença da Carla M.Soares e tem como centro da conversa este 'Limões na Madrugada'. É já no sábado, 17 de fevereiro, a partir das 18h na Livraria Ler, em Campo de Ourique (Rua Almeida e Sousa, 24C, Lisboa). Contamos consigo!!
ResponderEliminar