sexta-feira, 16 de novembro de 2018

Obras Completas, volume I (Maria Judite de Carvalho)

Quando se começa a descobrir um autor de obra vasta, é difícil, às vezes, decidir por onde começar. Este livro resolve facilmente esse problema. Primeiro volume das obras completas de Maria Judite de Carvalho, aqui se reúnem os livros Tanta Gente, Mariana e As Palavras Poupadas, ambos colectâneas de contos e ambos obras deveras relevantes.
E o primeiro conto é precisamente o que dá título ao primeiro livro. Tanta Gente, Mariana apresenta a vida de uma mulher só no meio do mundo, uma vida de enganos, desamores e da indiferente crueldade da normativa social. Relativamente longo, mas magnificamente escrito, transporta-nos para o pensamento - e para o coração, principalmente - de Mariana, fazendo-nos sentir as suas esperanças e desejos e, por isso, também a imensidade da sua desolação. Cativante, angustiante e emotivo, um conto verdadeiramente memorável.
Bastante mais breve é A Vida e o Sonho, história de Adérito e das linhas que separam o sonho da vida real. Introspectivo, questiona escolhas próprias e alheias, pondo o protagonista em destaque como alguém com um grande e indefinível sonho, mas preso a uma realidade a que nunca conseguirá escapar. É isso que torna marcante este pequeno conto: a peculiaridade das circunstâncias do protagonista e a forma como, dessas circunstâncias, surge um sentimento quase universal.
Segue-se A Avó Cândida, também uma história de amores profanos, mas estes preservados em segredo até ao raiar do derradeiro dia. Começa por mostrar os desgostos de Clara, mas é a história da Avó que lhe confere um tão intenso final. E deixa também uma pequena reflexão: que segredos se escondem, afinal, sob a fachada da moralidade?
A Mãe fala de uma mulher sem filhos e de um caso amoroso destinado à tragédia. Relativamente breve, mas bastante introspectivo, consegue, ao mesmo tempo que surpreende com as revelações finais, questionar as pequenas rotinas e indiferenças do quotidiano das relações.
A Menina Arminda fala de uma mulher atingida pela tragédia e pelas subsequentes tragédias inspiradas por esse acontecimento inicial. Melancólico, feito de tristeza tanto nas palavras como nos acontecimentos, marca, em primeiro lugar, pela forma como retrata a durabilidade de um único momento. Depois, pelos contrastes entre indiferença e estranha lealdade e, acima de tudo, pela forma como de um erro nascem outros, culminando num final devastador.
Noite de Natal conta uma história de vício e violência em que, numa noite de suposta paz, todos os sonhos e esperanças se desfazem. Angustiante, como a situação das protagonistas, marca pela forma como, embora encaminhado para uma conclusão previsível, reflecte em cada momento todo o peso das trágicas circunstâncias.
Segue-se Desencontro, e basta o título para adivinhar que não será propriamente uma história de final feliz. Os protagonistas são um homem habituado a uma vida errante e uma mulher que esperou... e depois deixou de esperar. Trata-se de um encontro final e o que mais impressiona é a forma como convenções e modos de pensamento distintos criam um contraste tão forte entre a posição de ambos. E, claro, como nenhum deles é exactamente quem pensava ser.
O último conto deste primeiro livro é O Passeio no Domingo, história de uma transgressão planeada e de como a vida às vezes tem outros planos. Pausado, embora relativamente breve, é pelo inesperado das circunstâncias, em contraste com a vida meticulosamente planeada do protagonista, que este conto se destaca. Pois, questionando pela primeira vez as normas da sua vida, Marcelino acaba por... encontrar algo diferente do que esperava.
Passando agora a As Palavras Poupadas. Também neste segundo livro, o título é comum ao do primeiro conto. As Palavras Poupadas conta a história de Graça, uma mulher cuja vida é feita de silêncios, de segredos e de pequenas transgressões familiares. Uma vida de regras impostas e ultrapassadas e, por isso, uma história feita de grandes descobertas e pequenas tensões, num relato extenso e pausado, mas estranhamente fascinante e também capaz de gerar emoções intensas
Segue-se Uma História de Amor, muito breve conto de amor e morte, de um amor "ridículo", como dizia o poeta, e de consequências igualmente absurdas. Dividido entre o tom de benevolente diversão da narradora e a estranha crueldade da conclusão, é como se contivesse vidas inteiras nas suas poucas páginas, deixando uma marca intensa e poderosa ao chegar ao final da história.
Uma Varanda com Flores fala de uma tragédia e de uma dúvida perdida nas memórias de uma velinha. Misterioso, por um lado, devido à resposta que se procura, e por outro profundamente triste, cativa pela forma como estas duas facetas se conjugam para dar forma à desolação da vida.
Segue-se Choveu Esta Tarde, breve reencontro com um passado que deixou marcas, mas também a certeza de que a vida continua. Marca, além da belíssima escrita que caracteriza todos estes contos, pela facilidade com que nos transporta para dentro da cabeça da protagonista, com toda a sua saudade daquele passado.
É sobre a velhice e o isolamento que A Sombra da Árvore se debruça, na história de um acto desesperado contada com a tristeza e a ternura de quem contempla os sentimentos mais difíceis. É fácil compreender a angústia de Firmino e é talvez por isso que o final tem um tão grande impacto. E é também uma história que faz pensar - na vida, na morte e na passagem de uma para a outra.
Surge depois A Noiva Inconsolável, história de uma solidão profunda e de um estranho amor que subitamente - ou talvez não - se desfez. Cativa, acima de tudo, por dois aspectos: pelo retrato breve, mas muitíssimo certeiro, da hipocrisia que, por vezes, se manifesta nas relações sociais, e pela forma como retrata a possibilidade de se estar só no meio das outras pessoas. Bastante profundo, principalmente tendo em conta a brevidade.
O Aniversário Natalício, por sua vez, fala, como o título indica, de um dia de aniversário. Um aniversário onde os sucessos e fracassos da vida são profundamente analisados e que culmina num momento... peculiar. Pese embora a estranheza do final, é nas introspecções de Boaventura e na sua análise da passagem do tempo que está a grande força deste conto, ainda que fique uma certa curiosidade insatisfeita acerca da carta misteriosa.
Segue-se Câmara Ardente, história da morte de um homem autoritário e das marcas que deixa naqueles que se reuniram para o velar. Partindo de um momento dramático para mergulhar nas vidas e sentimentos das várias personagens, culmina num final enigmático que torna tudo ainda mais notável.
E tudo termina em Viagem, provavelmente o conto mais sombrio do livro e também o mais surpreendente. Fala de uma viagem de avião povoada por perspectivas trágicas da parte do protagonista, e mostra sentimentos sombrios, ressentimentos secretos... e uma certa expectativa que acaba por, inesperadamente, se cumprir.
Três pontos unem o conjunto de todos estes contos: uma escrita belíssima, uma visão profunda e perspicaz dos recessos mais escondidos da natureza humana e um conjunto de episódios e circunstâncias tão capazes de gerar sentimentos fortes como momentos de profunda introspecção. A soma é mais do que suficiente para justificar o valor desta leitura tão marcante como intensa e surpreendente. E uma clara recomendação.

Autora: Maria Judite de Carvalho
Origem: Recebido para crítica

1 comentário:

  1. Maria Judite de Carvalho é a minha autora favorita. Estou muito feliz por ver a sua obra ser publicada agora, tornando-se mais facilmente disponível, e por estar a ser tão bem recebida :)

    (acrescento que, caso tenhas disponibilidade e não te ficar longe, amanhã às 18h o Volume II vai ser discutido na Almedina do Saldanha, em Lisboa :) )

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