quarta-feira, 17 de julho de 2019

Kick-Ass (Mark Millar e John Romita Jr.)

Dave Lizewski sempre se perguntou porque é que, apesar de tantas histórias de super-herói, nunca houvera ninguém a tornar-se num super-herói do mundo real. Decidiu, por isso, deixar de se questionar e dar ele mesmo esse passo. Mas não basta um fato invulgar e uma certa disposição para patrulhas nocturnas para ser um super-herói, até porque, na vida real, os espancamentos magoam. Dividido entre a ambição e a falta de jeito, entre as aspirações à fama e as dores das sovas, Dave vê-se, por isso, tentado a desistir. Mas é então que a Hit-Girl entra na sua vida - e Dave, mais conhecido como Kick-Ass, vê-se arrastado para uma situação maior do que as suas (não muitas) forças.
Super-heróis: fato catita, patrulhas nocturnas, fazer o bem e salvar os que estão em perigo, alcançando fama e admiração pelo caminho. Parece apelativo, não é? Pois é isso que pensa o protagonista desta história. Mas a realidade nunca é assim tão simples e é precisamente este facto doloroso que torna esta história tão cativante. É um super-herói no mundo real, e um super-herói que nem é assim tão talentoso. O que significa que, mais do que glamour, fama e grandes cenas de acção, temos dúvidas, hesitações, grandes cenas de acção, mas que não acabam assim tão bem para o protagonista e uma visão bastante menos cor-de-rosa das realidades da vida. Não é um livro cheio de combates intrépidos e teatrais (embora eles apareçam quando de facto importa), mas sim a história de um rapaz que descobre que há uma linha a separar o sonho da realidade. E que atravessá-la tem um preço.
Verdades duras à parte, não deixa, ainda assim, de ser uma história de super-heróis, com tudo o que isso acarreta. As cenas de acção podem não correr espectacularmente bem para Dave, mas estão lá e são fascinantes. Não faltam lutas, sangue, momentos de perigo e cenas de porrada em geral. E há ainda espaço em abundância para um sentido de humor ligeiramente negro, mas sempre delicioso, e para uns quantos rasgos de emoção particularmente fortes (principalmente na fase final). Parece haver como que um equilíbrio entre os aspectos comuns - a cor, os fatos bizarros, a abundância de sangue e de movimento - e os que se afastam das histórias de super-heróis (as cenas de Dave na escola, a escuridão do quarto, o rescaldo das múltiplas sovas - e principalmente da primeira).
E eis que, quase sem querer, surge uma reflexão, já que é voltando uma vez mais às verdades duras que surge ainda um último, mas especialmente marcante, equilíbrio: para ser um super-herói, Dave torna-se vulnerável à dor, mas também a sua sensação de não pertencer é já uma vulnerabilidade. O mesmo parece acontecer na história da Hit-Girl, cujo pai, na esperança de lhe dar algo de especial, acaba por abrir caminho a grandes feitos e a grande sofrimento. E da pergunta de Dave sobre o porquê de não haver mais super-heróis na vida real surge uma outra pergunta: será que vestir um fato e andar à porrada é o que realmente faz um herói? Ou será a vida em si - com tudo o que tem de diversão e de sofrimento, tal como a história contida neste livro - o derradeiro acto de heroísmo?
Fica, pois, esta impressão deliciosamente contraditória: a de uma história de super-heróis feita de vulnerabilidades. Intensa, viciante, emotiva, dramática, cheia de acção, de cor e de movimento... mas, acima de tudo, de humanidade. No fim, é isso que realmente marca: a fascinante surpresa de ver algo de tão profundo nascer de uma história aparentemente simples. Afinal, as aparências iludem, não é? Que o digam estes heróis mascarados...

Título: Kick-Ass
Autores: Mark Millar e John Romita Jr.
Origem: Recebido para crítica

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