quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Rapazinho (Lawrence Ferlinghetti)

Parte autobiografia, parte traçado do pensamento de várias gerações, parte fluxo de pensamentos mais ou menos imaginados ao ritmo da consciência, esta é a história de um rapazinho que se fez homem. Que passou por um orfanato, por uma vida de luxo, pela guerra, pelos meandros do erro e da descoberta, pelo contacto com os célebres e com os comuns. E é, como todas as vidas, uma história com princípio e fim - ainda que, em certos aspectos, pareça não os ter.
Não é propriamente uma novidade que há livros que são difíceis de descrever - o que não significa necessariamente que sejam difíceis de ler. Este é um desses casos: são tantas as peculiaridades, no estilo, no ritmo e sobretudo na forma como memórias, cenários, teorias e referências se cruzam, que é, ao mesmo tempo, uma experiência ligeiramente inebriante entrar no encadeamento destas palavras, e também uma impressão difícil de replicar. É um livro que fica na memória, mas não é propriamente fácil apontar os motivos concretos. E talvez seja também esta unicidade - de indescritível, mas estranhamente palpável - um desses mesmos motivos que o tornam memorável.
Não é uma leitura compulsiva, ainda que também não seja propriamente pesada. Mais uma vez, é o ritmo que o torna peculiar, o encadeamento das frases, em que tudo parece ao mesmo tempo natural e tão peculiar que exige atenção constante. Para isso contribuem também as inúmeras referências literárias, cinematográficas, mitológicas, filosóficas e por aí adiante, algumas mais conhecidas, outras mais obscuras, mas todas interessantes. Importa, aliás, fazer referência às notas da tradutora, ferramenta muito útil para entender algumas destas referências mais obscuras.
Claro que, tendo esta forma tão peculiar, e este tão invulgar encadeamento de ideias, não se pode esperar linearidade. E não a há, de facto. A história física e cronologicamente concreta do Rapazinho passa para segundo plano ante as ideias, teorias e fragmentos de memórias que povoam este incessante fluxo de consciência. E, claro, isto gera, por vezes, sentimentos contraditórios, no sentido em que fica uma certa curiosidade insatisfeita quando ao percurso concreto. É, ainda assim, tão estranha - e tão estranhamente fluida - a cadência particular desta leitura, que também essas impressões ambíguas - tal como a vida do próprio Rapazinho - acabam por passar para segundo plano, deixando o merecido destaque ao encadeamento de tão surpreendentes e eficazes frases.
Difícil de descrever nas suas muitas peculiaridades, mas fascinante precisamente pela sua unicidade, trata-se, pois, de um livro que exigirá o seu tempo para ser devidamente assimilado. Mas é esse mesmo tempo, e essa mesma mistura de fluidez e estranheza, que o tornam tão diferente e tão memorável. E é também dessa matéria que são feitas as boas leituras.

Título: Rapazinho
Autor: Lawrence Ferlinghetti
Origem: Recebido para crítica

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