quarta-feira, 28 de abril de 2021

Armazém Central: Marie (Régis Loisel e Jean-Louis Tripp)

É ao Armazém Central de Félix Ducharme que todos os habitantes da aldeia de Notre-Dame-des-Lacs vão buscar tudo aquilo de que precisam, o que significa que, além de ser o local onde tudo pode ser comprado, o armazém tornou-se também numa espécie de centro da comunidade. Só que agora Félix Ducharme morreu e a única pessoa a tomar conta do armazém é a sua viúva, Marie. Assoberbada por pedidos e responsabilidades, Marie tenta encontrar uma forma de prosseguir sozinha. Mas nem mesmo o apoio de uma comunidade coesa - ainda que também com todos os atritos e maledicências de um meio onde tudo se sabe - parece capaz de lhe tornar o trabalho mais leve. E há tanto trabalho para fazer...
Um dos aspectos mais impressionantes nesta série é a forma como, a partir de uma história que não é feita nem de grandes dramas nem de grandes momentos de acção, sei vai moldando uma visão completa - e sobretudo muito cativante - da vida nesta comunidade. Os desenvolvimentos nascem sobretudo das pequenas coisas - uma perna partida, um ciúme injustificado, alguém que morreu de velhice, alguém que se afastou da fé - mas formam uma teia tão coesa como a comunidade que os protagoniza. E, embora sendo uma história de vidas quotidianas, não deixa de estar repleta de momentos marcantes.
Outro aspecto a sobressair é a precisão com que retrata a vida em meios pequenos, nas qualidades e nos defeitos. Qualidades como o espírito de entreajuda, a forma como toda a aldeia converge para consolar quem perdeu alguém, a partilha dos momentos de alegria e a certeza de haver sempre alguém a quem recorrer. Defeitos como o alastrar furioso dos rumores, os julgamentos excessivos, o choque ante qualquer novidade e as limitações de uma vida onde há coisas que são inevitavelmente inacessíveis. É Notre-Dame-des-Lacs nos anos 20 do século passado, mas há coisas que continuam a ser muito actuais. E também esse reconhecimento contribui para tornar a leitura tão cativante.
Finalmente, e olhando agora para a arte, evidencia-se uma vastidão insuspeita. É que, ao fundo de cada momento central, há toda uma imensidão de pormenores a descobrir, seja em coisas tão simples como as brincadeiras das crianças ou em presenças tão discretas e oportunas como a do gato que aparece na capa e que, ao longo do livro, nunca deixa de ser uma presença expressiva e ternurenta. Além, claro, da expressividade de certos momentos: as lágrimas nos olhos de Marie, o desconcerto de Gaetan, a inesperada revelação das ideias luminosas do padre. Tudo ganha vida nas páginas e, seja no humor ou na emoção, tudo deixa a sua marca.
É, pois, uma história de pequenas coisas que convergem em toda uma vida: a vida de uma comunidade feita de singularidades e, sobretudo, de gente notável e de corações cheios de vida. Visualmente encantador e cheio de momentos notáveis, um livro memorável em todos os aspectos.

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