O anunciado cataclismo aconteceu e do mundo só resta uma ilha perdida no nada, cheia de prédios cinzentos e a abarrotar de gente, cuja condenação tem data marcada para o dia em que o afundar progressivo da ilha se tornar finalmente fatal. Mas talvez Autópsia não seja afinal a única terra que resta. A súbita chegada de um navegador solitário, em busca de uma misteriosa ilha deserta cujo único habitante pretende salvar, traz a Autópsia nova esperança... e um novo caos. E é neste cenário que o segredo da salvação emerge... para ser procurado por um e escondido por outros. Pois a salvação de Autópsia pode ser a destruição da inocência dessa outra gente.
Visão de um futuro catastrófico e distópico, em que até a sombra da salvação possível é mais uma ameaça do que uma promessa, este livro tem como uma das suas maiores qualidades a forma como, a partir das catástrofes futuras, traça uma reflexão sobre as realidades presentes. O cataclismo e o afundamento progressivo chamam a atenção para a actual questão das alterações climáticas. As manobras políticas, conspirativas e mais ou menos autoritárias das personagens levantam questões sobre um mundo onde a liberdade é cada vez mais condicionada, não só por autoritarismos, mas pela rotina opressiva de um trabalho constante, levado nesta história a níveis tão caóticos como os de uma vida pessoal sem privacidade. E a terra de Brandão, tão pura, tão inocente... tão longe... é, ao mesmo tempo, o paraíso prometido e o que o mundo podia ser com mais inocência e menos ambição.
Não faltam, pois, significados profundos, mas nem só da mensagem vive este romance. Há uma história povoada por personagens marcantes, com Joe como figura central, naturalmente, mas rodeada de outras figuras igualmente intrigantes, feita de momentos de tensão, de esperança, de desespero e até de auto-descoberta. Há intrigas políticas, confrontos pessoais, amores desfeitos, relações de interesse, um longo cárcere e um prenúncio de morte. Tudo isto se manifesta algures na história e surge precisamente no momento certo. O resultado é uma progressão gradual rumo a um clímax há muito prometido - a ilha está a afundar-se, é um facto - mas, ainda assim, surpreendente em muitos aspectos.
Mas importa ainda olhar um pouco mais para Joe e para Brandão, com os papéis cruciais que desempenham nesta história. Brandão é a promessa inconsciente da salvação, e é o mais inocente dos salvadores, ao ponto de não perceber os planos sombrios que se formam à sua volta. Joe percebe-os, o que o leva à sua difícil escolha. Destruir um mundo para salvar outro seria inevitavelmente um conflito impossível. E esta escolha de Joe - com todas as consequências que isso traz - é também o que faz dele uma personagem tão notável: um homem de princípios firmes no meio do caos e da intriga.
Notável será, por isso, uma boa palavra para descrever este livro: notável nas questões que aborda, na teia de intrigas e conflitos que constrói para este futuro dramático e principalmente nas personagens que habitam esta história. Profundo, complexo, e ainda assim de uma fluidez contrastante, um livro que surpreende desde as primeiras páginas... e deixa a sua marca bem depois do fim.
Título: Autópsia
Autor: João Nuno Azambuja
Origem: Recebido para crítica
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