segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

O Amigo do Deserto (Pablo d'Ors)

Uma frase na contracapa de um livro chama a atenção de Pavel para a existência de uma estranha associação de intitulados Amigos do Deserto. E, sem saber porquê, Pavel vê-se atraído para eles. Aquela não é, porém, uma associação normal. Só aos verdadeiramente apaixonados pelo deserto é permitida a pertença na associação e têm formas no mínimo caricatas de testar essa paixão. De início, Pavel não sabe bem o que puxa para ali. Mas, embora não o saiba, o deserto chama. E a sua vida nunca mais será igual.
Feito de partes iguais de mistério e de introspecção, este é um livro difícil de descrever. Por um lado, há os enigmas e o estranho comportamento da associação, as viagens, com todas as suas experiências e até os momentos de perigo vividos pelo protagonista. Por outro, há a sensação de uma viagem que, embora situada nos desertos exteriores, é mais ao interior da personagem e àquilo que define a sua busca do que a qualquer deserto do mundo. Tudo acaba, pois, por ser um pouco ambíguo, pois o percurso de descoberta pessoal de Pavel faz-se, acima de tudo, deixando coisas para trás para construir o seu próprio deserto.
Há, é certo, algo de fascinante nesta ambiguidade e o mais surpreendente é que, mais do que dos acontecimentos narrados, é das palavras - e até, de certa forma, dos estranhos desenhos do deserto - que surgem as impressões mais memoráveis. Também elas difíceis de descrever, claro, e emocionalmente complexas, mas estranhamente cativantes na forma como reflectem a confusão, a perda e finalmente a descoberta do protagonista, não só relativamente à tal amizade pelo deserto, mas sobretudo acerca do seu deserto interior.
É quase um percurso iniciático, em que o protagonista deixa a sua vida para trás para assumir uma nova vida, o que acaba por conferir ao livro uma certa e intangível aura de misticismo. Aura essa que, como tudo o resto neste livro, é também difícil de concretizar, mas que está lá, e que cativa também, tornando a fluidez das palavras mais envolvente.
Finda a leitura, fica esta intrigante e surpreendente imagem de um livro que, embora breve e de uma notável fluidez, contém profundidades insuspeitas na forma como a viagem exterior ao deserto reflecte a jornada interior do protagonista. Ambíguo, às vezes, mas precisamente por isso tão intrigante, um livro que nem sempre é fácil de descrever... mas que fica na memória, ainda assim.

Autor: Pablo d'Ors
Origem: Recebido para crítica

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