segunda-feira, 21 de abril de 2014

O Ano do Cão (Roderick Nehone)

Reformado, esquecido pela filha que há muito lhe guardava ressentimentos e sem meios de sobreviver, Rivelino encontrou no asilo uma forma de viver o resto dos seus dias. Mas a sua tranquilidade é abalada no momento em que um cão o segue e se instala na sua vida. Começa assim uma batalha entre duas vontades, humana e canina. E, por entre o desvendar de um passado que, para ambos, foi cheio de mudanças, começa a afigurar-se inevitável uma única conclusão para o conflito.
Escrito em capítulos curtos e com uma voz aparentemente simples, ainda que com surpreendentes laivos de poesia, este é um livro que consegue apresentar, em simultâneo, um enredo de surpreendente profundidade e uma história de leitura leve. Oscilando entre o presente, da batalha entre cão e homem, e os acontecimentos do passado, quer de Rivelino, quer dos anteriores donos do cão, o autor apresenta uma história que não é, na verdade, de grandes momentos (exceptuando, talvez, o clímax da batalha) mas principalmente do percurso gradual das personagens e da forma como evoluem com o mundo que as rodeia. Rivelino segue do sucesso ao abandono. Cassundinho parece fazer o percurso contrário. Mas na estrada que ambos têm em comum, e que é a vida, afinal, une-os um percurso de crescimento e de reconhecimento. A humanidade das suas histórias e experiências torna-os humanos. E, por isso mesmo, tudo o que vivem é cativante.
A mudança de perspectivas entre as diferentes personagens, e entre quem são em cada momento, permite também observar a evolução do cenário em que se movem. Desde as mudanças resultantes da revolução e da chegada da independência à pobreza vivida pelas crianças de rua, este retrato de um lugar levanta questões pertinentes, ao mesmo tempo que torna mais reais as vidas das personagens. Também isso faz parte do que torna este livro memorável.
Falta ainda falar do cão, também ele personagem relevante e com direito ao seu próprio ponto de vista. Com vários capítulos escritos da sua perspectiva, enquanto adversário do velho Rivelino, também a sua natureza se revela inesperadamente complexa, com pensamentos e motivações particulares e um percurso de vida também difícil e repleto de mudanças. Também esta particularidade coloca o conflito sob uma perspectiva diferente, já que, do confronto entre humano e animal, a batalha passa a ser antes entre duas mentes, ambas próximas do fim da vida, mas ambas com vontades bem claras. Iguais, em suma, no essencial.
Cativante e de aparente leveza, mas com uma grande profundidade a revelar, O Ano do Cão é, pois, uma leitura envolvente e surpreendente, com uma perspectiva muito interessante sobre a vida e o que a define, desde os primeiros anos até aos últimos dias. Muito bom.

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