terça-feira, 2 de setembro de 2014

Mataram a Cotovia (Harper Lee)

Jem e Scout, os filhos de Atticus Finch, são crianças perfeitamente normais. Ocupam-se com as mais improváveis brincadeiras e partidas, questionam o mundo que os rodeia e procuram, com a inocência que lhes é característica, compreender o máximo possível. Mas aquilo em que acreditam e o que conhecem do meio em que vivem sofre um abalo quando o pai é escolhido para defender Tom Robinson, um negro injustamente acusado de violar uma mulher branca. Muitos em Maycomb questionam a sua dedicação ao caso e mais ainda olham com desagrado a situação. Mas, mesmo que a situação se torne perigosa e que a batalha possa vir a estar perdida, a luta tem de continuar. E, aos olhos das duas crianças que começam a crescer, os acontecimentos serão uma lição inigualável.
É difícil explicar precisamente quais são as características que tornam este livro tão marcante. A história flui a um ritmo relativamente pausado, um pouco disperso até, com o mistério de Boo Radley a ocupar a posição dominante durante a fase inicial da narrativa e só depois dando lugar às questões levantadas pelo julgamento. Além disso, das interacções de Jem e Scout com a sociedade que integram, nem sempre são as virtudes que sobressaem, o que revela, em várias situações, o lado mais detestável das personagens.
Mas é como se tudo nesta história contribuísse para a tornar memorável. As injustiças, as pequenas guerras, o comportamento considerado normal para o tempo em que decorre a acção, tudo prepara caminho para uma grande lição sobre inocência e justiça. Não apenas a inocência dos acusados e a justiça que olha para a cor da pele para tomar uma decisão sobre factos dúbios, mas também para a inocência das crianças, de Scout que, a cada revelação, ganha uma mais vasta compreensão do mundo e da justiça (ou falta de) em emitir um julgamento irrevogável com base apenas na reputação ou nas normas sociais.
Há, pois, muito material para reflexão ao longo deste livro. Mas o mais impressionante é precisamente a forma como essa reflexão é provocada, sem grandes discursos nem situações exemplares, mas através dos acontecimentos tais como eles são e, consequentemente, das emoções que despertam. Porque também o impacto emocional é imenso e nem sempre associado aos grandes momentos. Basta uma frase ou um gesto narrado com simplicidade. E, subitamente, toda a percepção se altera.
E quanto a Boo Radley... A personagem que surge à partida como centro de um grande mistério para, depois, dar lugar a outras questões e outros protagonistas acaba por ter um papel tão surpreendente e tão perfeitamente conseguido que acaba por ser uma das figuras mais marcantes numa história em que tudo impressiona.
Ao mesmo tempo história de crescimento e reflexão sobre as normas sociais, o racismo e o preconceito, Mataram a Cotovia junta a inocência da infância à dos injustiçados, numa narrativa cativante, sempre surpreendente e com momentos de uma emotividade imensa. O resultado é, claro, brilhante.

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