terça-feira, 12 de outubro de 2021

O Hotel de Vidro (Emily St. John Mandel)

Vincent sempre viveu, de certo modo, à deriva, assombrada pelo desaparecimento inexplicável da mãe, pelos comportamentos do meio-irmão, pelas dúvidas sobre o que fazer consigo mesma. Mas a vida vai passando e, apesar de todas as sombras, vai encontrando os seus passos, o seu caminho, o seu lugar. E um dia, enquanto trabalha no bar de um hotel no meio do nada, a sua vida cruza-se com a de Jonathan Alkaitis, dono do hotel e uma grande figura do mundo financeiro. Começa assim uma nova mudança de vida e a entrada fulgurante no país do dinheiro. Mas Alkaitis tem os seus próprios segredos e a teia que construiu reúne muitas vidas - e consequências capazes de as abalar a todas.
Uma das primeiras e mais marcantes impressões da leitura deste livro é o reforçar de uma perceção comum ao anterior Estação Onze: a extraordinária capacidade que a autora tem de construir histórias complexas, de entrelaçar múltiplas vidas através de longos e conturbados períodos de tempo e de construir com elas poderosos contrastes, seja qual for o cenário ou o tipo de perturbações envolvidas. Em termos de enredo geral, dificilmente poderiam ser mais diferentes, mas têm em comum esta voz singular, que dá a cada personagem e a cada desenvolvimento o equilíbrio perfeito entre complexidade e naturalidade, entre a esperança das aspirações e a imensa desolação da realidade.
O enredo oscila entre diferentes períodos de tempo, com avanços e recuos na linha temporal, mas feitos sempre com uma tão grande naturalidade que nunca é difícil acompanhar o ritmo. Oscila também entre diferentes personagens, ao ponto de ser difícil, por vezes, associar o protagonismo a uma só, pois todas têm vidas completas, histórias fascinantes e percursos carregadinhos de momentos memoráveis. E tudo vai convergindo, à medida que as relações se tornam mais claras, num crescendo de intensidade, feito de grandes surpresas e de pequenas revelações, de tragédias anunciadas e de outras que sempre estiveram lá, na sombra, à espera de se fazerem notar.
Ainda seguindo nesta senda, importa salientar o que é, provavelmente, o aspeto mais poderoso de uma história toda ela impressionante: a forma como as linhas da moralidade se cruzam, sem nunca se esbater por completo, mas criando sentimentos contraditórios que tornam tudo ainda mais notável. A figura mais impressionante neste sentido é, como seria de prever, a de Jonathan Alkaitis, dadas as repercussões das suas atividades. Mas é algo que está presente em todos, desde Paul à própria Vincent: uma relativa ambiguidade que não dilui por completo a linha que separa o certo do errado, mas que permite sentimentos de empatia, de proximidade e até de um certo apego, mesmo por aqueles que, sob qualquer perspetiva lógica, só poderiam ser classificados como vilões.
O enredo é soberbo. As personagens são fascinantes. E a escrita é simplesmente sublime na precisão com que desperta emoções e sustém com avassaladora naturalidade uma complexa teia de equilíbrios e de ações. Tudo neste livro é memorável. Tudo é brilhante. Magnífico.

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