quarta-feira, 31 de agosto de 2022

Santa Família (Eider Rodríguez e Julen Ribas)

A vida é feita de objetivos e de rotinas. Sonha-se com uma família, com uma profissão, com um expandir de horizontes, com deixar descendência. Mas sonha-se... ou é a sociedade que impõe essas expetativas? No caso desta família, tudo se constrói em equilíbrio entre o desafiar de convenções e o mergulhar nessas mesmas convenções. As aspirações iniciais dão lugar a uma profissão mais realista, o amor conduz ao casamento e a uma filha, e eis que se instala a rotina. Até que Nora, a filha do casal, se revela como mais do que uma adolescente normal. E então tudo começa a mudar e a evoluir. Ou a regressar às origens?
Uma das principais forças deste livro é, curiosamente, também o aspeto que gera mais sentimentos ambíguos: a imperfeição. Toda a história gira em torno dela: vidas imperfeitas, personalidades imperfeitas, sonhos imperfeitos, relações imperfeitas. E, porque tudo é imperfeito, não há propriamente uma proximidade total e absoluta com nenhuma das personagens, até porque os equilíbrios das relações tendem a realçar também mais as imperfeições delas. Mas, sendo certo que não são propriamente personagem admiráveis, a verdade é que esta ambiguidade as torna também mais reais: as dificuldades, as rotinas, os atritos e as fricções entre personagens tornam-se mais reais pelo facto de ninguém ser perfeito. Como na vida. E assim, mesmo quando a faceta inesperada da história ganha forma, é a humanidade das personagens que se destaca - nas qualidades e nos defeitos.
Esta imperfeição das personagens repercute-se também num aspeto visual que parece procurar refletir, acima de tudo, gentes e hábitos reais. Sim, salvo as devidas exceções de certas revelações da história, que criam também um contraste visual interessante (mas que importa manter em aberto). Mas a imagem geral que se forma é a de pessoas comuns num cenário razoavelmente normal - e isso é tão notório a partir do enredo como dos cenários e das expressões.
Finalmente, importa referir outra ambiguidade. Não se trata propriamente de uma história de grandes acontecimentos (ou, pelo menos, vistos de uma perspetiva exterior à desta família). E assim, salvo as já referidas revelações inesperadas, também não são os grandes momentos a ter o maior impacto. São as reflexões que emergem desta história: sobre a vida, sobre o crescimento, sobre a independência, sobre a rotina... Sobre todas as imperfeições que definem a existência humana.
História de uma vida familiar aparentemente comum nas suas imperfeições, mas com laivos de surpresa e muita matéria para reflexão, eis, pois, um livro que pode deixar alguns sentimentos ambíguos, mas que não deixa de refletir com impacto a estranha vulnerabilidade do ser humano. E isso basta. Sem dúvida.

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