R é um zombie. Do seu passado enquanto vivo, recorda apenas a inicial de um nome que desapareceu com todos os conhecimentos aprendidos. Não tem qualquer outra memória. A sua existência resume-se ao aeroporto onde deambula com os outros Mortos e às expedições de caça onde ele e muitos outros se alimentam... dos vivos. Mas R não é exactamente como os outros e, no dia em que o seu caminho se cruza com o de Julie (depois de uma conveniente refeição proporcionada pelo seu namorado), a natureza de R começa a alterar-se e a inevitável barreira que o separa dos Vivos deixa de parecer tão intransponível como julgara...
Muitas das histórias de zombies são, na verdade, sobre os sobreviventes humanos ao inevitável apocalipse zombie. É dos vivos que tratam e da sua capacidade de resistir. Mas não é o caso deste livro, ou, pelo menos, não completamente. Sangue Quente é contado do ponto de vista de um zombie e, como tal, é da vida (ou da não-vida) de R que se trata. E o seu percurso é um ponto de partida muito interessante para a abordagem de várias questões sobre o que define a natureza humana.
Sem memórias, sem sentimentos, sem uma história com a qual aprender, R é, à partida, uma figura com pouco de humanidade. E se lhes juntarmos o facto de ser um zombie que se alimenta dos vivos, a definição torna-se bastante mais clara: monstro. Mas as coisas nunca são exactamente a preto e branco neste livro e, ao apresentar os pensamentos de R e a forma como as mudanças o tornam bastante diferente da imagem inicialmente esperada, levanta-se então uma questão muitíssimo interessante: que elementos definem um ser humano? Uma pulsação, um coração que bate, o sangue vermelho que circula nas veias? Ou a capacidade de sentir e de pensar, de recordar e de planear, de fazer escolhas que moldam o futuro e, simplesmente, desejar viver?
Da explicação para o aparecimento dos zombies - doença, maldição ou outra qualquer razão ignorada - não há grandes desenvolvimentos. Fica a curiosidade em saber os comos e os porquês, mas esse é um aspecto secundário: a situação surgiu e o mundo reagiu como sabia. Assim, o mundo de R é apresentado tal como é, sem origens nem grandes desenvolvimentos de história prévia, mas centrado essencialmente nas personagens. Há, ainda assim, algumas revelações interessantes à medida que R. se torna mais capaz de perceber o mundo em redor, tanto a nível da história de Julie (e Perry) antes do momento em que se encontraram como no que toca ao desenvolvimento dos Vivos e à reacção face à ameaça Morta. Também desses momentos surge algo para reflectir, quer sobre a capacidade de reacção à adversidade, quer sobre o valor das memórias e das emoções. Mais uma vez, parte do que define a condição humana.
O mundo de R é inesperadamente elaborado, não sendo, por isso, surpreendente o ritmo relativamente pausado da narrativa. Surpreende, contudo, a forma como a estranheza inicial se abre numa inesperada complexidade emocional: por um lado, o toque de macabro proporcionado pelas "rotinas" dos zombies, por outro a quase ternura com que o contacto entre R e Julie se vai desenvolvendo, por outro ainda a quase melancolia de um mundo em que uma ameaça levou a que todos se fechassem ao que dá valor à vida.
No que toca a histórias de amor, esta tem, provavelmente, uma das bases mais estranhas. Ainda assim, e sendo muito mais que o simples envolvimento romântico entre criaturas de mundos opostos, Sangue Quente apresenta muito de bom para descobrir. História de um estranho amor, mas também reflexão sobre o que nos faz humanos, este é um livro que cativa tanto pela estranheza do cenário, como pelas emoções que, aos poucos, se tornam familiares. E é, acima de tudo, isso que fica na memória.
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