Quando criança, viu-se inesperadamente protegido por um homem de ilustre fama enquanto livreiro - e o seu coração dividiu-se entre o pai simples e a ânsia de ser alguém mais importante. Cresceu entre dois mundos e de coração dividido, sem saber que segredos levavam a essa tão estranha situação. Já adulto, e mais em paz com as duas facetas da sua existência, Manoel vê-se num ponto de viragem. O editor morreu. O futuro da livraria está em aberto. E também o pai há muito que partiu. A Manoel, restam apenas as memórias e o súbito fascínio por umas quantas pessoas perdidas e um amor que, do passado, lhe traz um amor diferente. Mas o que julga saber e a verdade são duas coisas diferentes. E o que é a verdade, afinal?
Longe de ser uma leitura compulsiva, apesar dos capítulos bastante curtos, este é um livro que leva o seu tempo a assimilar, principalmente pela estranheza inicial. Isto deve-se em grande medida à escrita, que, bastante elaborada e com um estilo onde as palavras inesperadas se sucedem, dá forma a uma voz própria e onde são muitas as peculiaridades que é preciso absorver. E esta sensação de estranheza nunca se desvanece por completo, mas, uma vez entendidas as suas particularidades, tudo se torna bastante mais natural e, à medida que Manoel cresce e se revela, também a fluidez da narrativa aumenta, culminando num final onde todas as respostas dadas têm algo de tão próximo que a distância inicial acaba por se desvanecer.
Abrem-se então as portas do mundo de Manoel Luz. E há tanto na sua história a ponderar. Desde a criança dividida entre o pai simples e o editor que o seduz com importâncias futuras ao adulto desencantado que começa a descobrir o que sempre esteve lá, há no caminho da vida de Manoel toda uma sucessão de descobertas e de revelações que, não sendo propriamente momentos de grande impacto na história, marcam, contudo, várias verdades fundamentais. E, da criança cheia de sonhos ao adulto desencantado, vai um crescimento muito único, mas onde é fácil descobrir pontos em comum - até porque todas as vidas os têm, e a de Manoel é bastante completa.
Mas há ainda um outro ponto marcante - talvez até o mais marcante em todo o livro. É que, crescendo em tempos de convulsão e de mudança, Manoel vive a mudança de regime, de percepções e de (algumas) mentalidades. E, do seu caminho, é possível retirar muitos pensamentos pertinentes - sobre influências, sobre razão e emotividade, sobre os diferentes papéis dos homens na máquina do mundo, sobre a vida e a liberdade, em suma. Claro que nem tudo é simples. Nada é simples, aliás, e ficam, muitas vezes, sentimentos ambíguos sobre escolhas e comportamentos. Ainda assim, também isso contribui para tornar a jornada mais realista - pois, num mundo tão complicado, dificilmente se encontra alguém absolutamente bom.
Tudo somado,fica a impressão de uma leitura feita de estranheza e de mistério, em que a verdade se esconde nas pequenas coisas e tudo parece ser relativo consoante os olhos de quem observa. Cativante e surpreendente, na forma como no conteúdo, um livro que pode exigir algum tempo... mas que merece todos os minutos.
Título: As Falsas Memórias de Manoel Luz
Autora: Marlene Ferraz
Origem: Recebido para crítica
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