Muitos pensavam que nunca poderia acontecer, mas bastou o carisma de um reverendo fanático, um discurso demagógico assente em estatísticas deturpadas e a indiferença generalizada para que, de repente, todo o país mudasse. Agora, as mulheres estão limitadas a cem palavras por dia, à vida do lar e a uma existência onde tudo é controlado, quando não absolutamente negado. A Dra. Jean McClellan não se conforma, mas sabe que acordou tarde demais. Por isso, quando se vê ante a possibilidade de regressar ao seu trabalho de investigação, ainda que temporariamente, livrando-se da pulseira que lhe controla as palavras, Jean agarra a oportunidade. Só que o seu soro destina-se a algo muito mais vasto do que curar o irmão do presidente... e muito mais sombrio. A não ser que ela faça alguma coisa.
Uma boa palavra para começar a descrever este livro será aterrador. Aterrador porque traça um cenário terrível e também porque o discurso na base deste cenário não anda assim tão longe do pensamento de certas figuras reais. A primeira qualidade é, por isso, esta mesma: a relevância de discutir direitos que, embora vistos por muitos como garantidos, podem facilmente ser retirados. É um cenário terrível, mas terrivelmente realista, o que faz deste livro a fonte de muito material para reflexão.
A segunda qualidade é o ritmo intenso e viciante, que, além de reforçar o impacto de cada desenvolvimento, torna impossível parar antes do fim. Há sempre algo para desvendar em cada um dos seus curtos capítulos, seja no percurso que gerou a situação actual, seja no caminho que Jean e os outros têm pela frente na sua oportunidade de mudar as coisas. E, à medida que o enredo evolui, há também todo um conjunto de surpresas e de momentos intensos a fazer com que tudo na história seja notável.
Há ainda a construção das personagens, particularmente da protagonista. Jean e Jackie, nas suas vidas passadas, eram pólos opostos: a conformada e a activista. E, ao assumir Jean como protagonista, aquela que não se preocupou, a que achava impossível que acontecesse, a que acordou demasiado tarde, a autora consegue, além de realçar a importância de se estar atento à realidade, gerar uma heroína a partir de uma personagem falível. Isso torna as coisas mais interessantes e o crescimento de Jean muito mais intenso. Além, é claro, de reforçar a ideia (sempre particularmente pertinente num livro destes) que é sempre possível - e preciso - fazer alguma coisa.
Intenso, relevante e assustadoramente real, trata-se, pois, de um livro que deixa uma marca profunda, não só nas questões que evoca, mas na história construída para as suas personagens. Com um cenário aterrador e um percurso feito de luta e de uma estranha redenção, um livro imperdível por todas as razões. Aterrador, sim. Mas acima de tudo brilhante.
Título: Vox
Autora: Christina Dalcher
Origem: Recebido para crítica
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