O mundo de Anna desabou quando, num curto espaço de tempo, o pai e a mãe puseram termo à vida da mesma exacta forma. Talvez por isso nunca tenha conseguido aceitar plenamente a situação. E aparentemente tinha motivos para isso. No primeiro aniversário de uma das mortes, Anna recebe um postal que põe em causa a possibilidade de se ter realmente tratado de um suicídio. E, embora parece tratar-se apenas de uma partida de mau gosto, Anna não consegue deixar de pensar nisso. Vai, pois, à polícia e encontra em Murray Mackenzie alguém capaz de partilhar das suas suspeitas. Mas as coisas mudam num piscar de olhos e, tal como a polícia estava enganada a respeito da hipótese de suicídio, também Anna está errada no que julga ter realmente acontecido.
Com um arranque relativamente pausado e uma sucessão de acontecimentos cuja intensidade parece crescer de forma gradual, à medida que novas revelações vão surgindo, este é um daqueles livros que "primeiro estranha-se, depois entranha-se". Apesar das circunstâncias de Anna, não é uma história que gere uma empatia imediata, talvez porque as pessoas que a rodeiam parecem demasiado focadas no seu próprio mundo. Mas, quando nada é previsível e todas as surpresas têm um impacto devastador sobre a protagonista, é impossível não começar a sentir uma certa proximidade. E a distância inicial vai-se esbatendo a cada revelação, culminando, por fim, num final surpreendente em todos os sentidos.
Embora o mistério central seja o do que aconteceu realmente aos pais de Anna, nem só deste caso vive a história. A acrescentar à situação de Anna, e à forma como evoca dificuldades familiares, assuntos inacabados e a sombra ominosa (e cujos verdadeiros contornos só no fim se tornam claros) da violência doméstica, está a vida pessoal de Murray, com a doença de Sarah e as dificuldades de Murray em lidar com a ideia da reforma a darem-lhe uma motivação pessoal para se embrenhar no caso. Murray acaba mesmo por ser a personagem que mais simpatia desperta, com as suas dificuldades pessoais a realçarem o facto inegável de ser uma das poucas personagens que tem inequivocamente o coração no sítio certo.
São as grandes reviravoltas a base dos vários picos de intensidade que surgem ao longo desta história: tantas que, a certo ponto, se torna impossível perceber o que move realmente algumas das personagens. Ainda assim, mais do que a surpresa causada por estes desenvolvimentos, fica um impacto mais vago, mas particularmente interessante: a forma como estas reviravoltas se repercutem no que julgamos saber sobre as personagens, principalmente Caroline. O pesado luto de Anna parece inicialmente apontar para uma família perfeita. Mas a imagem que fica no fim é algo de muito diferente.
Surpreendente será, pois, uma boa palavra para definir este livro, que, com as suas personagens ambíguas e constantes reviravoltas, pode demorar um bocadinho a prender, mas que depois se torna impossível de largar. Misterioso, cativante e cheio de surpresas, uma boa leitura, em suma.
Título: Deixa-me Mentir
Autora: Clare Mackintosh
Origem: Recebido para crítica
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