Enquanto polícia, Mike Hoolihan já viu de tudo e já lidou com tudo, desde os casos mais improváveis ao simples e incontornável facto de quase todos parecem confundi-la com um homem. Mas nada a podia ter preparado para o que tem agora em mãos. Jennifer Rockwell, amiga de longa data e filha do seu antigo mentor, foi encontrada morta e tudo aponta para um suicídio. Mas o pai de Jennifer não está disposto a aceitar esse facto sem antes fazer duas coisas: descartar as alternativas e descobrir o porquê. Para lhe dar estas respostas, Mike terá de mergulhar a fundo na vida de Jennifer. E, ao fazê-lo, ganhará também uma nova visão sobre a sua vida: mais sombria, mas perturbadora, mas também mais clara naquilo que a define.
Tendo na base uma morte suspeita, é difícil não ver este livro como um policial. E é-o, em parte. Temos uma agente a investigar um potencial crime, a seguir pistas, a interrogar possíveis suspeitos e testemunhas e a chegar, finalmente, a umas quantas revelações. Além, claro, de certos pormenores particularmente marcantes da vida de Mike enquanto polícia. É, porém, também algo diferente. É o retrato da vida das duas protagonistas, dos valores e das quedas que definiram o seu percurso, das linhas comuns e da insondável diferença que as separa. E da morte, sempre a pairar como uma presença vaga, facto consumado que deixou marcas e que é, afinal, a força motriz de todas as personagens.
Surpreende, talvez, que, sendo um livro relativamente breve, tenha um ritmo tão pausado. Mas faz sentido. Mais do que pistas e revelações, embora seja destas que surgem alguns dos grandes momentos, é da vida íntima e pessoal das personagens que vive o verdadeiro âmago da narrativa. E nem Mike nem Jennifer são mulheres fáceis de compreender. É preciso tempo para assimilar todas as suas peculiaridades e compreender aquilo que as fez mover ao longo do tempo. E, havendo sempre uma certa ambiguidade nas suas naturezas, faz um certo sentido que o final seja também ele ambíguo.
Até a escrita reflecte esta estranheza das personagens, oscilando entre um registo quase intimista e a dureza inevitável de Mike na sua implacável busca de respostas. Há descrições memoráveis, frases devastadoras e repetições que, ecoando ao longo do texto, parecem ajustar-se na perfeição ao estilo da protagonista. E se também estas peculiaridades exigem um pouco mais de tempo de assimilação... bem, a verdade é que tudo vale a pena.
Breve, mas surpreendentemente complexo, trata-se, pois, de um livro que funde o mistério e a intriga de um policial com um percurso pessoal que é quase um tratado sobre a presença da morte. Ambíguo, sim, mas cativante e com uma escrita também ela cheia de surpresas, um livro exigente, a espaços, mas que, na sua singularidade, facilmente se torna memorável.
Título: O Comboio da Noite
Autor: Martin Amis
Origem: Recebido para crítica
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