terça-feira, 2 de abril de 2019

Já Ninguém Chora por Mim (Sergio Ramírez)

Em tempos, herói da revolução, depois polícia de renome. E agora reduzido a detective privado, investigando relações extra-conjugais e pouco mais. Eis o percurso do inspector Dolores Morales. Mas esta descida ao esquecimento sofre um súbito abalo com a entrada em cena de um rico empresário que lhe pede que descubra o paradeiro de Marcela, a enteada desaparecida. Com os seus invulgares aliados, o inspector dedica-se ao trabalho, embora o padrasto poucos elementos lhe tenha dado com que trabalhar. Só que o objectivo real da sua contratação parece ser fazê-lo queimar tempo e isso Morales não é capaz de fazer. À medida que começa a aproximar-se da verdade, o que vem à tona é o mundo da podridão dos poderosos. E entre fazer aquilo para que lhe pagaram e fazer o que está certo pode haver um abismo intransponível.
Mistura de história de detectives e retrato de uma sociedade de intrigas, este é um livro que, embora se enquadre no género, está bastante longe das características habitualmente esperadas de um policial. Primeiro, tem um ritmo bastante mais pausado do que o habitual, já que as especificidades do cenário e a delicadeza do contexto exigem uma descrição mais extensa. Depois, está muito longe de se cingir à investigação, abordando questões bastante mais profundas e traçando um seguimento de pistas que surgem de quase todas as formas - excepto por via da dedução. E, finalmente, está muito longe de culminar numa resolução limpa e definitiva, o que deixa uma curiosa - mas estranhamente adequada - sensação agridoce ao terminar a leitura.
Se isto lhe retira impacto? Muito pelo contrário. Através do inspector Morales e do percurso da investigação, o autor apresenta um mundo de intrincados meandros, onde aos poderosos tudo é permitido, onde se fizeram revoluções para tudo ficar mais ou menos na mesma e onde, quando alguém ousa fazer frente ao poder instituído, as consequências seram... bem, imponentes. Há todo um caminho de choque, como que um abalo ante a resignação do mundo, e é isto, mais do que o simples paradeiro de Marcela (embora essa investigação tenha também muito de interessante, claro) que torna esta leitura memorável.
E, num livro em que tudo é invulgar, importa dizer que também as personagens o são, desde o inspector Morales à sua rede de aliados improváveis, passando, também, claro, pelos inimigos, dos mais implacáveis aos mais estranhamente bizarros. O que não há é uma única personagem banal. Cada um à sua maneira, todos acrescentam algo de único à narrativa, seja do ponto de vista do desenvolvimento da história, seja até nos inesperados laivos de humor e até mesmo de emoção. Nem tudo é fácil de compreender, mas tudo surpreende, e isto aplica-se tanto às personagens como à história.
A impressão que fica é, pois, a de um policial surpreendentemente pausado, surpreendentemente complexo - e também surpreendentemente memorável. Com as suas personagens invulgares e o seu retrato dos meandros do poder, consegue deixar a sua marca nos momentos mais imprevistos e ficar na memória bastante depois de terminada a leitura. Leva o seu tempo, sim, mas vale a pena. Sem dúvida.

Autor: Sergio Ramírez
Origem: Recebido para crítica

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