sábado, 2 de maio de 2020

O Doente Molière (Rubem Fonseca)

Começa a sentir-se mal durante a representação de O Doente Imaginário. Passadas poucas horas, está morto, mas não sem antes ter confidenciado a um amigo anónimo que foi mortalmente envenenado. E, após uma busca frenética por um padre - ainda que não por um médico, pois este amigo tem segredos que precisa de preservar, - eis que este amigo regressa para encontrar Molière morto. Sente-se agora culpado por não ter feito mais para o salvar e decide, por isso, descobrir quem foi o assassino. Mas Molière fez muitos inimigos com as suas peças - e o marquês anónimo não pode dar-se ao luxo de se envolver em assuntos de venenos.
Provavelmente o aspecto mais surpreendente neste curto livro é a forma como, apesar da brevidade, consegue apresentar com tanto pormenor a teia de intrigas e influências da França de Luís XIV. Pode haver um crime no centro da história, mas é o contexto mais vasto que sobressai, com as peças de Molière a servirem de base para uma surpreendentemente completa reflexão sobre poder, hipocrisia e influências que se movem fatalmente nas sombras. É, pois, um livro breve, mas relativamente pausado e, mais que o registo de um crime quase perfeito, é a história do tempo em que esse crime ocorreu.
Também particularmente notável é o facto de a vasta maioria das personagens - com excepção do narrador anónimo - serem reais. É, pois, possível reconhecer partes desta história e vê-las de uma perspectiva diferente. A época dos venenos na corte de Luís XIV é um período relativamente conhecido e ver as figuras desse período entrelaçadas na história mais singular e pessoal da morte de Molière tal como é vista pelo seu amigo marquês realça a complexidade de uma narrativa capaz de conter em menos de cem páginas o essencial de um período inteiro.
E, claro, importa olhar para o que é, apesar de tudo, o enigma central do livro: quem foi o responsável pela morte de Molière. Embora pareça, por vezes, que esta parte do enredo passa para segundo plano face ao contexto histórico e à própria história do marquês anónimo, a questão nunca deixa de estar presente e, ainda que a derradeira resposta não seja absolutamente surpreendente (afinal, com tantos inimigos, era inevitável que a possibilidade já tivesse surgido no pensamento), não deixa, ainda assim, de ter o seu impacto - até porque, tal como tudo o resto, se vê também envolta na omnipresente teia de intrigas e influências da época.
Breve, mas surpreendentemente complexo, trata-se, pois, de um livro que, apesar de relativamente pausado, marca sobretudo pela capacidade de conter na sua relativa concisão toda a imensidão da corte francesa e das suas intrigas. É um mistério diferente - mas um mistério ainda assim. E deveras memorável.

Autor: Rubem Fonseca
Origem: Recebido para crítica

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