sábado, 16 de janeiro de 2021

Roupão Azul (Ana Paula Jardim)

Não é apenas uma peça de roupa. É o ponto de partida para uma viagem às memórias, aos laços de coração, aos afectos e a um passado feito de pequenas memórias que são, ao mesmo tempo, pessoais e constatações do mundo. É um roupão que foi de outrem antes de ser próprio, e que por isso guarda as memórias de antes da perda. E é uma abertura à alma, a uma alma individual que tem, ainda assim, pequenos reflexos de todos nós.
Provavelmente a impressão mais forte que fica deste pequeno livro é a de uma poesia que é, ao mesmo tempo, introspectiva e descritiva. Descreve cenários, épocas e hábitos, tradições de meios pequenos e de passados que persistem, locais, objectos e pessoas. Mas tudo isto é visto da perspectiva de um olhar individual, da voz claramente comum a todos os poemas, que faz com que, embora completos na sua individualidade, estes textos formem um conjunto mais amplo, uma viagem maior.
E é uma viagem singular, uma viagem à memória, o que significa que haverá tanta identificação como estranheza. As emoções são familiares - nostalgia, perda, melancolia, introspecção, esperança - mas os elementos específicos são exclusivos da voz que os relata. E, assim, a poesia é simultaneamente história, ou fragmentos da história de uma vida, pintados em imagens surpreendentes, mas sempre com o seu quê de familiar.
Ainda um último ponto que se destaca, e que contribui para esta impressão, é a estrutura. São versos que parecem fluir ao ritmo da omnipresente memória, não havendo grandes imposições em termos de métrica ou de rima, mas que assumem, ainda assim, uma cadência cativante e uma fluidez notável. São, simultaneamente, viagem ao interior, viagem ao passado, viagem à paisagem externa e viagem à história da voz que nos fala. E, sendo certo que há versos e poemas mais e menos marcantes neste conjunto, a verdade é que o todo é bastante memorável.
Não é, pois, apenas uma peça de roupa. É uma viagem singular e marcante, feita de memórias, de paisagens e de rasgos surpreendentes no meio da nostalgia. Uma leitura breve, em suma, mas muito cativante.

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