terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

Cântico Negro (José Régio)

Todos conhecemos certamente o poema que dá título a este livro, com o seu firme "sei que não vou por aí". Conheceremos, talvez, mais alguns dos poemas que o constituem, quanto mais não seja dos tempos da escola. Mas há um todo muito mais vasto à espera, um círculo de criações posteriores que vão traçando regressos à origem. E um mundo de imagens e de sombras que é fascinante de se descobrir. Há um pouco de tudo neste Cântico Negro - fé, assombro, desânimo, esperança, desolação. E, entre o ritmo das palavras e o labirinto das imagens que elas projetam, há muito de notável para descobrir.
Algo que importa destacar, antes de mais, neste livro é o facto de ser uma antologia formada a partir de diferentes obras. Aliás, há ainda uma outra referência a fazer neste sentido, relativa aos ensaios que precedem o poema. São análises complexas, académicas, mas das quais mesmo um leigo consegue retirar muita informação. E uma delas prende-se com a forma como as primeiras obras vão sendo repercutidas nas posteriores. É algo que facilmente se confirma numa leitura sequencial, e que pode até gerar uma ideia de repetição. Mas, mais do que isso, fica uma imagem de evolução - ou de um círculo que se completa.
Outro aspeto particularmente vincado é o forte contraste entre fé - ou religião - e sombra. Seria, talvez, de esperar que as visões mais místicas que surgem ao longo da leitura estivessem associadas a cenários mais luminosos, mas não é assim. E sombras, rasgos de macabro, sentimentos sombrios e imagens de angústia são coisa que não falta ao longo destes poemas. Cria-se, assim, um equilíbrio estranho, mas estranhamente adequado, como que um olhar para o alto a partir das profundezas. Um laço a unir mundano e transcendente.
O outro ponto que falta destacar é, naturalmente, a estrutura. Há uma certa variação de formas, ainda que com um domínio dos sonetos e os poemas longos, e também na métrica e na rima. Mas há um ponto comum a todos: um ritmo próprio, uma cadência peculiar, que confere melodia às palavras e faz com que estas se entranhem no pensamento de forma mais profunda.
Regresso ao familiar e expansão dessa familiaridade, trata-se, pois, de um livro que é um ciclo em si mesmo. E que pode, por vezes, parecer que se repete - mas na forma de um eco a propagar-se através do tempo. Belo, vasto e cativante, um livro a descobrir e a revisitar.

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