Envolventes, peculiares e com uma certa propensão para o sinistro, os contos de Maupassant reflectem, de uma forma curiosa, os elementos do impossível e do sobrenatural. Num tom quase pessoal, criado pela proximidade entre o narrador de cada conto e as personagens que nele intervêm, muitas vezes amigos ou pacientes do próprio narrador quando não é este o próprio protagonista da história. E há sempre algo de surpresa, seja no final ou no caminho percorrido para o atingir, algo de mistério que fica no ar concluída a leitura.
A abrir esta antologia, o conto A Mão do Escorchado conta a história de um indivíduo que se apresenta ante os amigos na posse de uma mão supostamente pertencente a um antigo criminoso. Interessante como, neste texto, o que começa por ser um ambiente leve e divertido ganha força e intensidade com a revelação do macabro. Segue-se Magnetismo, onde, numa discussão sobre o tema, é um incrédulo a dar voz a duas histórias que, apesar do que aparentam ser, o narrador insiste em afastar do milagre. Um conto curioso e de leitura agradável, ainda que fique talvez a sensação de que falta algo por revelar.
Sonhos, a história de como, numa conversa entre amigos, um médico louva os benefícios do éter enquanto substância modificadora da consciência, surge como um conto agradável e que, ainda que sem grandes acontecimentos, marca pelo final curioso. Já A Lenda do Monte Saint-Michel, uma peculiar versão de como o arcanjo Miguel derrotou o demónio, combina de forma muitíssimo envolvente os elementos de mistério e as situações improváveis, para resultar num conto deveras surpreendente.
Em Conto de Natal, temos o Dr. Bonenfant a narrar um acontecimento que anuncia como milagre, no exemplo de uma mulher possuída depois de comer um ovo. Peculiar, intenso e envolvente, um conto invulgar. Aparição, por sua vez, conta como, a pedido de um amigo, o narrador visita a casa do outro para recuperar alguns documentos, encontrando aí uma visão. Enigmático na sua totalidade, o mais marcante neste conto é a forma como o autor encerra o mistério, deixando no seu lugar um novo enigma.
Segue-se Ele?, onde um homem anuncia que vai casar para afastar a solidão de um medo instilado por uma estranha visão nocturna. Intenso na descrição do medo e na perturbação com que o narrador tenta racionalizar a emoção, este é um dos contos mais marcantes do livro. Misti conta a história de um homem, da sua amante e do seu gato. Bastante envolvente, marca pela forma como a superstição se apodera da vida da mulher, levada a acreditar cegamente numa história talvez baseada em acasos.
Curioso desde o início e marcante pelo final intenso, Um Cobarde apresenta a história dos preparativos para um duelo causado por um simples olhar insolente, numa interessante representação do antagonismo entre a cobardia e a coragem aparente, particularmente clara na forma como o visconde se apercebe do seu próprio medo. E é em O Horrível que a ligação pessoal com o narrador encontra a sua melhor representação, neste intenso conto em que um general invoca duas experiências da sua própria vida para definir o horror, presente não na morte por si só, mas no seu engano e na sua necessidade. Segue-se ainda O Tique, a história intensa, envolvente e um pouco sinistra de um estranho tique nervoso e do perturbador acontecimento que lhe deu origem.
Sucedem-se dois contos com títulos similares, mas conteúdos bem diferentes. Um Louco? conta a história de Jacques Parent, um homem que, em noites de trovoada, tem medo de si próprio. Intenso e um tanto dramático, representa uma interessante abordagem aos poderes do magnetismo. Já Um Louco (sem ponto de interrogação) apresenta o documento descoberto após a morte de um eminente magistrado, resultando numa elaborada reflexão sobre a morte e a necessidade de matar. Muito filosófico, principalmente na fase inicial, aumenta progressivamente de intensidade para culminar num fim perturbador.
Acerca de Gatos conta a história de um homem e da sua relação de amor/ódio com os gatos. Contado em tom de divagação, tem o seu ponto alto na descrição dos sonhos que atormentam o protagonista.
O Horla, um dos contos mais conhecidos do autor, é aqui apresentado em duas versões. A história apresenta as progressivas manifestações de uma entidade desconhecida e os seus efeitos num homem julgado louco. E se o resultado é, em ambas as versões, envolvente e de leitura viciante, a versão mais conhecida (a segunda neste livro) torna-se, pelo maior desenvolvimento do tormento progressivo do protagonista, que aqui conhecemos mais claramente uma vez que a história assume a forma dos seus registos, mais intenso e cativante, ainda que pequenos elementos inseridos nesta versão denunciem parte da surpresa.
O conto seguinte é A Morta, a história emotiva, surpreendente e um tanto irónica de um homem que, decidido a passar uma última noite junto ao túmulo da amada, descobre uma dolorosa revelação. Já A Noite, Pesadelo conta como, numa noite particularmente escura, um homem dá por si perdido em divagações pela cidade deserta, numa clara imagem de uma solidão mortal.
Moiron, conto que já conhecia de uma leitura prévia noutra antologia, conta o caso de um professor cujos melhores alunos morrem misteriosamente. Particularmente arrepiante pela ideia de uma necessária vingança contra o divino, um conto misterioso e perturbador. Também com um claro potencial perturbador, A Adormecedora apresenta uma curiosa reflexão sobre o suicídio, "sublime coragem dos vencidos", na forma de uma instalação imaginária para facilitar a morte àqueles que a desejam. Uma ideia intrigante, explorada de uma forma estranhamente leve, mas que poderia ser um pouco mais desenvolvida.
E o livro termina com o conto Quem Sabe?, a história de como, numa noite solitária, o mobiliário ganha vida e decide abandonar a sua casa. Peculiar e envolvente, deixa, contudo, parte do mistério por esclarecer.
Balanço final da leitura: agradável e envolvente na generalidade, surpreendente em vários contos, sendo alguns deles verdadeiramente marcantes. Uma leitura cativante e impressionante, com histórias que vale a pena percorrer.
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