Um ano depois do auto-de-fé em Logroño, tudo indica que as bruxas voltaram a acção. E é com o objectivo de prevenir novos ataques, como o que supostamente terá vitimado a delatora Juana de Sauri, que o inquisidor Alonso de Salazar y Frías estabelece um percurso pelos lugares mais afectados, no sentido de encontrar culpados e redimir os arrependidos. Entretanto, Mayo de Labastide d'Armagnac, que sempre viveu com a confiança de que a sua protectora olharia por si e com a angustiante certeza de ser filha do diabo, vê-se sozinha e obrigada a descobrir o que aconteceu a Ederra. Assim se cruzarão os caminhos da jovem curandeira e do severo inquisidor. Mas serão eles assim tão diferentes?
É curioso constatar, ao longo deste livro, o contraste entre a linha narrativa do inquisidor e a de Mayo. A missão do inquisidor é punir os culpados de bruxaria, mas todas as suas investigações apontam para a negação da existência de tais entes. Mayo, por seu lado, não sendo uma bruxa no sentido literal do termo, acaba por representar o lado místico da narrativa, com os seus unguentos, o seu companheiro (supostamente, um homem transformado em burro) e até mesmo os poderes que a jovem associa à sua protectora.
Há algumas dificuldades a nível de ritmo de acontecimentos, já que, por vezes, a autora tende a divagar demasiado por situações do passado dos protagonistas, acabando por deixar a sensação de ter esquecido a linha principal da história para explorar elementos de contexto político e cultural que, apesar de interessantes, acabam por ser pouco relevantes para o enredo. Ainda assim, este é um aspecto que vai melhorando com o desenrolar da narrativa, sendo a segunda metade do livro bastante mais envolvente que a primeira.
O mais cativante neste livro, contudo, está nitidamente na construção da personalidade e do nível de pensamento do inquisidor. Salazar ocupa uma posição de considerável valor na hierarquia do Santo Ofício, mas o que o torna tão diferente de todos os outros é, por um lado, a sua insistência na investigação imparcial, dando importância a factos e não a denúncias, e, por outro, o lado sensível e até benevolente oculto sob a máscara da austeridade. Trata-se de um importante membro da Igreja, mas que vive com grandes dúvidas de fé e que tem essas mesmas dúvidas como base motivadora do seu trabalho: se encontrar o diabo, saberá que existe Deus. E o seu lado humano manifesta-se também nestas dúvidas, assim como na relação de compreensão para os que servem sob as suas ordens e na sua devoção quase total ao seu superior.
Uma leitura interessante, ainda que com algumas oscilações de ritmo, provocadas essencialmente pelas questões políticas paralelas, e por alguma previsibilidade no que toca aos responsáveis pelos supostos mistérios do enredo. Ainda assim, uma história agradável, com alguns momentos de grande intensidade e um final muitíssimo interessante. Gostei.
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