Morreram todos antes de ela decidir contar a história. A história de uma mãe emprestada que, sem nunca ter tido filhos, se fez gravar na história de toda a sua família. De irmãos cujos caminhos se separariam sem verdadeiras razões para a crescente distância. De um tempo e de um núcleo de gentes onde o inexplicável prosperava. Porque nem tudo é claro nas memórias - mas a realidade possível é sempre mais nítida. E a história, conta-a ela ao ritmo da recordação. Como que pensando, sentindo, tudo o que ficou para trás.
Pouco mais de cem páginas e a história de uma vida inteira: assim se poderiam definir as bases deste livro, pois descrevê-lo é mais difícil do que parece. Começando na voz da narradora e culminando em tudo o que fica pela simples insinuação, há tanto que fica escondido nas palavras que é difícil traçar uma linha geral da narrativa sem dela revelar demasiado. Mas, curiosamente, há também algo de estranhamente eficaz nesta brevidade certeira, pois, mais que a curiosidade insatisfeita (que, fica, é certo, face a certos momentos), fica a impressão de uma vida que é sempre maior do que recordamos.
O que me leva ao que é, para mim, o aspecto mais memorável deste livro: a escrita. Não é fácil dizer tanto em tão pouco espaço, e dizê-lo com as palavras certas torna-se ainda mais difícil. Mas há, no tom deste livro, poético, nostálgico, como que introspectivo, uma ponderação que parece fazer com que tudo ecoe precisamente da forma certa. Não, nem tudo é contado. Sim, ficam perguntas sem resposta. Mas a impressão de mistério que fica deste registo onde, em tudo o que é dito, parece haver muito mais apenas insinuado, acaba por compensar em muito a tal sensação de curiosidade insatisfeita.
É que este mistério estende-se também às personagens, pois nenhuma delas se revela como sendo fácil de compreender. Carlota, especialmente, é ela mesma uma fonte de mistério, pois raramente "contou alguma coisa sem omissões." E o mundo - e as pessoas que a rodeiam - são igualmente enigmáticos. Assim, faz todo o sentido que fique muito por dizer - independentemente de toda a vontade de ficar a saber mais. E essa vontade de querer ler mais e conhecer melhor acaba por passar para segundo plano face ao equilíbrio que tudo parece alcançar.
Breve, mas misterioso e surpreendentemente complexo. Ambíguo nas respostas, tal como a vida das personagens que o povoam. Mas estranhamente fascinante na beleza das palavras e no enigma que estas tecem em torno da vida. É este o retrato que fica desta Fábrica de Melancolias Suportáveis, lugar que vale a pena conhecer.
Título: Fábrica de Melancolias Suportáveis
Autora: Raquel Gaspar Silva
Origem: Recebido para crítica
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