Da recusa e das suas consequências: é este, talvez, o cerne deste livro e o ponto para onde os dois contos, à partida tão distintos, parecem convergir. Recusa do sentimento ou recusa da acção. Recusa, independentemente do seu objecto específico, do que se consideraria ser a conduta normal. É este o ponto central que une os dois contos deste Livro Amarelo. Mas não é o único.
Sendo esta uma colecção que tem como premissa as relações possíveis entre obras aparentemente muito diferentes, é claro que é precisamente por este aspecto que tenho de começar a falar neste livro. É fácil identificar o principal ponto em comum - a recusa dos dois protagonistas. Mas há um outro aspecto a sobressair desta leitura: é que, escritos por autores diferentes, com estilos diferentes e vindos de contextos diferentes, ambos os contos - e ambos os protagonistas - parecem juntar-se num conjunto harmonioso. O estilo de escrita, de alguém que testemunha o sucedido com o protagonista e tenta tirar do que sabe alguma réstia de compreensão, é comum aos dois contos. Também comum é a estranheza que os protagonistas despertam ao contrariar o que parece ser a norma. E, assim, sem nunca perderem a sua identidade própria, as duas histórias no mesmo livro parecem dar forma um todo que é maior do que a soma das partes - sendo que para isso contribuem também os muito interessantes textos que acompanham os contos.
Mas, passando especificamente a cada conto. José Matias, de Eça de Queiroz, fala da história de um amor espiritual e de um homem que, a tudo renunciando em nome desse amor, acaba por causar a sua própria destruição. Aqui, a recusa é, acima de tudo, sentimental, ainda que as consequências se manifestem de uma forma muito prática. E é precisamente isso que torna o conto tão marcante, pois, ante um narrador filósofo, que tudo parece querer racionalizar, os actos acabam por falar mais alto que as palavras, fazendo da renúncia de José Matias algo de absolutamente memorável.
Quanto ao Bartleby de Herman Melville, a situação parece ser bastante mais estranha, pois o protagonista é um homem que primeiro aceita um emprego para, depois, e de forma gradual, se firmar numa recusa do mais educada que pode haver - firmada na frase "preferia não o fazer" - mas que dificilmente poderia ser mais terminante. Há em tudo isto uma boa dose de estranheza, pois o próprio narrador não entende as motivações do protagonista. Mas há também muita matéria para reflexão: por um lado, na inesperada força de uma resistência passiva; por outro, no potencial subversivo que, inconscientemente, parece mover a recusa de Bartleby.
E, consideradas estas duas histórias, bem como os textos que as acompanham, fica ainda mais em que pensar, pois as recusas dos protagonistas ganham outra dimensão vistas desta perspectiva mais ampla - com todas as consequências associadas. Fica, além disso, uma estranha e cativante proximidade relativamente às personagens, o que não deixa de ser também uma surpresa, pois, apesar de serem ambos figuras tão peculiares, é difícil ignorar a surpreendente simpatia que as suas situações despertam.
A impressão que fica é, por isto, por tudo isto, a de um livro cheio de qualidades, não só pelas histórias que lhe servem de base, mas pela forma como tudo se harmoniza num equilíbrio maior. Cativante, surpreendente e memorável em todos os aspectos, um belíssimo acréscimo aos Livros Amarelos.
Título: José Matias / Bartleby
Autores: Eça de Queiroz / Herman Melville
Origem: Recebido para crítica
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