Desempregado, na iminência de um divórcio, e consumido por um certo desespero, um homem regressa ao bairro onde cresceu. Muito mudou, mas os fantasmas das figuras e dos lugares do passado continuam presentes. E é o encontro com uma dessas figuras que desperta a memória. Percorrendo episódios e lembranças do passado, o protagonista será conduzido pelo seu próprio Virgílio numa viagem aos confins de um bairro com tanto de Purgatório como de Inferno e de Céu.
Feito de memórias e de pessoas invulgares, é precisamente a peculiaridade que primeiro cativa neste livro. O Bairro Amélia, lugar de recordações e de fantasmas, caracteriza-se, tal como é visto pelo protagonista, por ser a base de um conjunto de situações - e de gentes - tão estranhas como reais. Por isso, a primeira impressão que este livro evoca é um misto de estranheza e de fascínio. Ou de uma estranheza que, feita de tantas invulgaridades, mas de tantos elementos comuns à realidade, é precisamente a razão do tal fascínio.
Peculiar nas figuras e nos momentos, também a estrutura deste livro é invulgar, e também este aspecto o torna cativante. Quase como uma enciclopédia de memórias, grande parte do livro toma a forma de um registo compartimentado, categorizado pelos episódios e figuras centrais. Desta estrutura, resulta um conjunto em que cada episódio, cada personagem, cada reflexão, até, valem por si mesmas, e bastam-se na sua própria história, mas em que a soma das partes é algo de muito mais vasto. Cria-se, assim, um equilíbrio particularmente impressionante, em que as breves histórias de muito se confundem para formar a história de um todo. História essa que é, em simultâneo, a do Bairro Amélia e a do próprio protagonista.
Ainda um outro aspecto marcante é, como não podia deixar de ser, a escrita. Ocasionais rasgos de poesia cruzam-se com uma escrita mais crua, adequada aos momentos mais sombrios. Equilibradas, as palavras ajustam-se na perfeição ao que têm para contar, transmitindo com uma clareza marcante, quer os acontecimentos, tensões e emoções de cada episódio ou história individual, quer a impressão de melancolia que, no fim de contas, acaba por ser a característica na base do Bairro Amélia, lugar de sonhos estagnados.
Tudo se conjuga, pois, para transmitir uma imagem, um retrato do lugar, das pessoas e até mesmo das emoções. Uma viagem aos confins da recordação, escrita de forma belíssima, rica em momentos marcantes e com um final verdadeiramente impressionante. Vale, pois, a pena conhecer As Primeiras Coisas. Vale muito a pena.
Sem comentários:
Enviar um comentário