segunda-feira, 12 de novembro de 2018

Mãe, Promete-me que Lês (Luís Osório)

Escrever, ao estilo de uma kafkiana Carta ao Pai, uma carta à mãe há muito perdida, mergulhando nas boas e más memórias do passado para ajustar, talvez, as contas que foram deixadas por saldar: é esta a linha essencial deste livro. Um livro que, vasculhando memórias intransmissíveis, dificilmente poderia ser mais pessoal, mas que, ainda assim, parece evocar sentimentos mais vastos e familiares, independentemente das divergências. Pois podem-se conhecer ou não as figuras mais célebres, que as relações, essas, são universais. E é este equilíbrio entre o íntimo e o global que torna esta leitura tão cativante.
Uma das primeiras coisas a surpreender neste livro é que, embora centrado em memórias pessoais, se lê como se de um romance se tratasse. Apresenta-nos as suas figuras - o autor, os elementos da família, os amigos, a sempre presente Mãe - como personagens completamente novas. São-no, aliás, para quem lê. E assim, o que acontece é que o mergulho que o autor da carta faz nas suas próprias memórias transporta-nos a essa mesma viagem, levando-nos a conhecer as suas principais figuras e os sentimentos muitas vezes complexos a elas associados.
É concebível que, ao escrever sobre uma pessoa amada que partiu, pudesse surgir a tentação de embelezar as coisas. Não é o que acontece aqui. Lembrando, mais uma vez, a carta de Kafka, também aqui há espaço para todo o tipo de sentimentos e memórias: afectos e ódios, laivos de ternura e grandes traumas. E o caminho é longo - é uma vida inteira - , mas há tanto para descobrir e tantos (e tão fortes) sentimentos por trás que é quase como viver também um pouco dessa vida. É um percurso único, sim, e absolutamente pessoal - mas é fácil encontrar pontos de empatia. E é isso afinal que fala ao coração.
Importa ainda falar da escrita em si, até porque, num registo tão pessoal, a forma como as coisas são ditas ganha outro peso. É de uma carta que se trata - de uma longa carta ao passado, talvez - e, assim sendo, faz todo o sentido o registo intimista do texto. Faz também sentido o divagar entre diferentes momentos, pois é de memória que se trata, não de uma história linear, e é também isso que cria a muito interessante sensação de ter entrado nas memórias sentimentais do autor - pois não mostra só as recordações, mas também os sentimentos que elas provocam.
Não é um romance, mas poderia sê-lo. Porquê? Porque é como descobrir toda uma vida de raiz. Com o seu registo pessoal e introspectivo, o seu deambular por memórias únicas, mas com pontos e sentimentos comuns a muitas outras vidas, e a abertura de quem fala a alguém muito amado, mas muito distante, é quase como ver alguém contar uma história a si mesmo. Tornando-a real para todos os que a lerem. 

Autor: Luís Osório
Origem: Recebido para crítica

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