Cora Seaborne acaba de perder o marido e o que sente em nada corresponde ao que as convenções ditam que devia sentir. Pela primeira vez, sente-se livre de viver como julga melhor e de explorar a sua paixão pelo passado. Quando ouve pela primeira vez a história da serpente do Essex, um monstro que, aparentemente, deambula pelo estuário do Blackwater, Cora sabe que tem de investigar, pois julga ter ali a sua oportunidade de encontrar um fóssil vivo e conquistar o seu lugar na história. O que não sabe é que o que a espera em Aldwinter é algo de diferente. Aí, encontrará a mais invulgar das amizades na figura do reverendo William Ransome. E esse afecto abrirá caminho a todas as respostas - e a mudanças que nenhum deles sabe explicar.
Ainda que Cora Seaborne pareça ser o ponto para que todas as linhas do enredo convergem, uma das primeiras coisas a chamar a atenção neste livro é que, mais que uma única protagonista, há um conjunto de personagens igualmente relevantes que, no seu conjunto, dão forma a uma narrativa complexa e sempre intrigante. Até a própria serpente do Essex pode ser vista como uma personagem, tal é a forma como influencia o comportamento de todos os que conhecem a história. E isto, este núcleo de figuras centrais cujas relações e interdependências dão forma a um percurso cheio de estranhas descobertas, faz parte do que torna todo este enredo tão fascinante.
Claro que, tendo isto em vista, a narrativa flui a um ritmo relativamente pausado, não só pela necessidade de acompanhar várias personagens, mas também devido ao próprio ritmo do mistério. A influência das coisas e das pessoas é algo que se manifesta gradualmente e conhecer as personagens e o que as move é crucial para a compreensão desta influência. Mas, há algo mais nessa relativa lentidão, algo que parece reforçar a percepção do ambiente. É que a vida em Aldwinter, em oposição, por exemplo, às experiências de algumas das personagens em Londres, é também ela de relativa tranquilidade - excepto no que toca à serpente, claro. E, assim sendo, este ritmo brando da passagem do tempo acaba por fazer todo o sentido, pois é esse o ritmo a que as personagens se movem.
Mas há ainda um outro aspecto que sobressai e a forma como a autora constrói a narrativa realça bem esta característica. Mais do que a história de uma misteriosa serpente, este livro fala, acima de tudo, de pessoas. Pessoas que amam e odeiam, que alimentam esperanças e sofrem com os seus medos, que crêem ou questionam e que, perante os mistérios da vida, se assumem também como os seus próprios mistérios. E assim, ninguém se revela por completo a não ser na complexa interacção com os outros. Interacção essa que é a verdadeira magia num enredo todo ele cheio de mistérios.
Da soma de tudo isto, resulta um livro pausado, mas sempre cativante, em que os verdadeiros mistérios não vêm de uma serpente monstruosa, mas das almas que o medo e a esperança parecem moldar a cada nova descoberta. Complexo, marcante e com uma escrita belíssima, um livro memorável de uma autora a seguir.
Título: A Serpente do Essex
Autora: Sarah Perry
Origem: Recebido para crítica
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