domingo, 16 de janeiro de 2022

Piranesi (Susanna Clarke)

Piranesi vive na Casa. A Casa é todo o seu mundo, um lugar de infinita beleza e bondade, onde os salões e corredores se prolongam num labirinto sem fim, coberto de estátuas e governado por estranhas marés. Além dele, mais ninguém habita a casa a não ser o Outro, que o visita de vez em quando e lhe pede que recolha dados sobre as singularidades da Casa. E os dias passam, registados no seu diário pessoal, onde vai tomando nota das suas descobertas e dos pequenos acontecimentos dos seus dias, bem como das suas missões para o Outro na sua busca pelo Grande Conhecimento Secreto. Até que subitamente tudo muda. Há uma nova presença na Casa, que traz consigo verdades desconfortáveis e memórias supostamente sepultadas. E Piranesi, que julgava saber tanto, descobre que não se conhece tão bem como julgava. E que talvez a Casa não seja tudo, afinal.
Parte do que torna este livro tão admirável é a sua delicada fusão de estranheza e naturalidade. Piranesi é um homem sozinho num labirinto, que é o único mundo que conhece e não é de todo o nosso. E, ainda assim, as suas deambulações e explorações por entre estátuas brotam com uma fluidez fascinante. É como se nos levasse com ele a deambular pela infinita beleza da casa e pela enternecedora inocência da sua extraordinária mente. Tudo no seu mundo é singular, mas tudo faz um estranho sentido. E, à medida que as revelações se vão sucedendo, tudo vai crescendo também em intensidade, por entre picos de desolação e de angústia, mas também de ternura e de devoção.
Há algo de profundamente belo no cenário criado pela autora. Mas há também uma crueldade subjacente. Piranesi é feliz na Casa, mas há segredos por trás da sua presença ali, e descobri-los pode ser salvação ou destruição. O mundo da Casa é completo na sua singularidade, mas há elos de ligação que se expandem para lá dele e que abrem caminho a facetas inesperadas. E o Filho Amado da Casa é também vítima de um engano. A única realidade que conhece não é a sua realidade original. E a descoberta de tudo isto traça um tão impressionante labirinto emocional - de inocência e de manipulação, de ternura e de crueldade, de esperança e de vazio - que é impossível não deixar um pouco do nosso próprio coração na Casa.
Toda esta beleza única resulta também, naturalmente, da voz da autora - e, neste caso, da voz que a autora dá ao protagonista, pois é o diário de Piranesi que nos conta a sua história. E é uma voz belíssima, retrato perfeito da inocência, mas também das emoções fortes que o acometem, de uma mente meticulosa, que descreve ao pormenor o mundo em que se move, mas que expressa com angustiante precisão o estranho labirinto mental em que vive também. Não faltam momentos memoráveis, no enredo e nas palavras que o descrevem. Não falta encanto e emoção.
Um pouco à semelhança da Casa, também este livro é de uma beleza insondável, feita de estranhezas e fascínios, de inocência e crueldade. Maravilhosamente escrito, fascinante nas personagens e particularmente poderoso na forma como encerra de forma perfeita uma história feita de improváveis tornados realidade, todo ele é beleza e força. Todo ele é magia, em suma.

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