Ninguém sabe como foi possível que a mensagem se manifestasse da forma como apareceu, não só nos meios de comunicação habituais, mas também em rótulos, bulas e até apontamentos manuscritos. Mas uma coisa é certa: a mensagem existe e o que anuncia está prestes a acontecer. Dentro de muito pouco tempo, os cidadãos de todo o mundo terão de escolher apenas um sentido e será com esse - e apenas esse - que ficarão. Ora, isso mudará a forma como o mundo funciona e, por isso, as entidades governativas não tardam a encontrar a solução ideal - será o governo a decidir com que sentido cada pessoa fica. Para bem da nação, naturalmente. Só que nem todas as pessoas estão dispostas a resignar-se a isso e há uma grande diferença entre uma escolha imposta e uma escolha voluntária. Há quem se oponha. Quem aceite. Mas, quando tudo acontecer, nada será exactamente como se espera...
Bastam algumas páginas deste livro para vir ao pensamento uma associação evidente ao Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago. Não que seja uma imitação, não, mas são os pontos em comum o primeiro aspecto a sobressair e é, aliás, o contraste entre o comum e o diferente o que mais cativa nesta leitura. E que pontos comuns são estes? Bem, a ideia da perda de um sentido (ou, neste caso, vários) e da forma como isso se repercute na sociedade, bem como um olhar que, mais do que a história de uma personagem, toma como protagonista a sociedade como um todo. Além disso, também a autora tem um estilo de escrita muito próprio (ainda que, claro, de especificidades distintas) e isso realça a mesma unicidade que caracteriza tanto este livro como o Ensaio sobre a Cegueira.
Mas passando especificamente a este livro, que é o que aqui mais importa. Não é tanto um mistério (ainda que o mistério esteja presente) como uma história de consequências e, por isso, as explicações ficam muitas vezes para segundo plano. E, assim sendo, é claro que fica uma certa curiosidade insatisfeita, pois há motivos e origens que nunca chegam a ser explicados. Também é verdade, no entanto, que os motivos são um aspecto secundário da narrativa, que, centrada na forma como as pessoas - governo, juristas, cidadãos comuns - lidam com a perda dos sentidos, vive mais de acontecimentos (e das consequências destes acontecimentos) do que propriamente de explicações.
E é talvez também por isso que é estranhamente fácil entrar no ritmo do texto, já que a escrita tem um ritmo peculiar em que, apesar de não haver uma linha precisa (até porque a narrativa segue várias personagens) parece haver uma impressão de movimento constante. Há sempre algo a acontecer ou uma questão importante a ponderar. E as figuras centrais desta história realçam essas questões importantes, pois, da sombra de uma mudança imprevisível, surge um olhar bastante preciso sobre vários temas pertinentes da vida em sociedade.
A impressão que fica é, por isso, a de uma história que não dá todas as respostas, mas que, das que dá e das que deixa ao pensamento do leitor, consegue formar um retrato diferente, mas muito consistente, de uma sociedade possível. Intrigante, surpreendente e com uma fluidez muito cativante, uma boa surpresa.
Título: Ensaio sobre o Dever
Autora: Rute Simões Ribeiro
Origem: Recebido para crítica
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