Depois da calamidade que deixou mergulhadas num fogo eterno as terras devastadas, foram poucos os que sobreviveram - e esses criaram na ilha uma comunidade fechada e com leis muito estritas. Pelo menos, foi nisto que as raparigas da ilha foram ensinadas a acreditar. Mas há algo que não bate certo naquele mundo em que os pais têm todos os poderes, as mulheres devem apenas obediência e fertilidades e as filhas têm de dar aos pais tudo o que eles lhes pedem. E, quando algumas raparigas começam a questionar, há verdades terríveis muito perto da superfície... e o que parecia quase uma lei divina revela-se uma estranha prisão.
Não é propriamente fácil falar por este livro, mas, tendo de escolher um ponto de partida, direi que é um livro de contrastes vincados. E isto aplica-se não só à história em si, mas à própria experiência de leitura. Por um lado, há uma beleza quase poética nas palavras, mas o que estas descrevem é profundamente perturbador. Há um estranho fascínio que leva a querer quase que desesperadamente uma solução - e, no entanto, esta não é uma história de revoluções. Há verdades tão duras que facilmente tornam a história angustiante, mas, ainda assim, é quase impossível parar de ler. E, no fim, o que fica é esta mistura de fascínio por uma história que não dá nem perto de todas as respostas, mas em que tudo parece ser quase perfeito.
Também não se pode dizer que seja apenas um livro que desperta questões relevantes - todo ele é um ninho de questões relevantes. A manipulação através da fé, a mentira que leva a comportamentos inadmissíveis, o poder ilimitado que leva a decisões incontestadas, a sociedade isolada que permite que alguns tudo possam e outros não possam nada. Tudo isto está presente e de uma forma devastadora. E, por outro lado, surge mais uma vez o contraste: as protagonistas desta história são maioritariamente crianças e, pese embora a crueza do mundo em que vivem, têm ainda assim uma inocência que apenas faz com que sobressaia mais a crueldade do mundo que as rodeia.
Mas volto atrás: não é uma história de revoluções nem um mecanismo de viragem que fará com que tudo mude. Muda, talvez, no máximo a consciência de alguns. E, claro, isto deixa sentimentos ambíguos, até porque ficam muitas perguntas em aberto. Mas a verdade é que faz sentido que assim seja, pois é tal o rumo dos acontecimentos (e tal a cegueira de alguns dos envolvidos) que uma mudança global teria de implicar uma história diferente. Esta é uma história de crescimento - cruel, mas de crescimento, ainda assim - e, sendo esse o percurso inevitável das protagonistas, faz apenas sentido que o resto acabe por passar para segundo plano.
Não, não é fácil falar sobre este livro, até porque a marca que deixa é, acima de tudo, emocional. Mas basta provavelmente dizer isto: pode rasgar-nos o coração pelo caminho, causar angústia, revolta, perturbação. Mas, no fim, fica-se melhor por o ter lido. E isso faz com que tudo valha a pena. Recomendo.
Título: O Silêncio das Filhas
Autora: Jennie Melamed
Origem: Recebido para crítica
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