sexta-feira, 5 de junho de 2020

A Célula Adormecida (Nuno Nepomuceno)

Lisboa. Em plena noite eleitoral, o grande vencedor fecha-se no gabinete para escrever o seu discurso de vitória. Pouco tempo depois, ouve-se um tiro, no que parece ser um aparente suicídio. Entretanto, a explosão de uma bomba num autocarro traz a ameaça terrorista para a agenda mediática. E para a atenção de todos. Defrontado com este cenário, o professor Afonso Catalão vê-se subitamente atacado de todos os lados: primeiro, por uma jornalista que, no que devia ser um comentário inócuo, começa a atribuir-lhe palavras que nunca proferiu; depois, com o emergir gradual do passado. É que o bombista suicida é um dos seus alunos. E, associado ao misterioso passado de Afonso no Médio Oriente, é bem possível que isso o torne suspeito... Movem-se sombras pesadas no coração da sociedade. Já o de Afonso... está pejado de fantasmas.
Quando se lê um livro pela segunda vez, principalmente se for um livro de que gostámos, há sempre como que uma ligeira apreensão. Será que vai ter novamente o mesmo impacto ou a impressão que criámos gerou expectativas demasiado elevadas. Bem, neste caso, a aposta foi segura. Não só correspondeu a todas as expectativas, como a impressão global conseguiu ser ainda melhor do que da primeira vez.
Parte do que torna esta história tão empolgante tem a ver com a forma como o autor consegue construir simultaneamente um enredo cheio de acção, de intrigas e de reviravoltas e um percurso pessoal profundo para as suas personagens. Afonso Catalão é um homem com um passado penoso e cheio de mistérios, tanto que, mesmo quando ainda sabemos muito pouco sobre ele, já é possível sentir a estranha empatia que muitas vezes emana dos atormentados. Entra aqui, aliás, mais uma vez, o impacto da releitura: é que, sendo este o primeiro volume na série, é particularmente fascinante este regresso às origens. Ver quem era Afonso no início, e também Diana, e ver como mudaram ao longo do caminho os sentimentos que estes dois protagonistas despertavam.
Outro aspecto notável é a teia de temas globais que serve de base ao percurso destas personagens. Da crise dos refugiados à reputação no mínimo duvidosa do clube Bildenberg, passando pelos atentados terroristas, pela radicalização da fé, pelo ódio dos grupos de extrema-direita e pela vulnerabilidade de quem perdeu tudo na busca de uma vida melhor, há toda uma vastidão de assuntos relevantes nesta história. E é brilhante a forma como todos estes temas marcam presença de forma lúcida e perspicaz, abordados com toda a complexidade que exigem, sem nunca comprometer o ritmo alucinante da acção principal.
O que me leva, naturalmente, a uma palavra que descreve muito bem esta leitura: viciante. Porque é disso que se trata, seja a primeira ou a segunda vez que estamos a mergulhar nesta história. Lemos dois ou três capítulos e vemo-nos subitamente transportados para o mundo destas personagens. E lá continuamos, fascinados, até chegarmos ao fim. E também o final se destaca pelo equilíbrio, pois dá a todas as personagens um destino adequado, mas que não só não tem nada de previsível, como é tudo menos limpo e perfeito. Além disso, há dois novos elementos nesta edição que vem acrescentar-lhe ainda mais força. O conto de Sarita realça o doloroso contraste entre a sua inocência e aquilo que a vida lhe reservou. E o final alternativo cria um elo de ligação com o volume seguinte da série... além de revelar um lado surpreendentemente humano de um certo senhor de olhos gélidos.
Há quem diga que não devemos regressar aos lugares onde fomos felizes, pois podemos apanhar uma desilusão. Não é o caso deste livro. Igualmente intenso, empolgante e delicioso, é um regresso ao ponto de partida ainda mais brilhante e notável da segunda vez. Que não será, certamente, a última.

Autor: Nuno Nepomuceno
Origem: Recebido para crítica

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