segunda-feira, 29 de junho de 2020

O Silêncio das Mulheres (Pat Barker)

Pode ter começado devido a uma mulher, mas os protagonistas das narrativas da guerra de Tróia sempre foram homens: Odisseu, Ájax, Príamo, Agamémnon... Aquiles. E a história é, ainda e sempre, a de Aquiles, mas não só. Briseida, a mulher que dá voz a este livro, começou como uma criança do seu tempo, ascendeu a rainha num casamento infeliz e viria a desabar com fúria ante a tomada da sua cidade, reduzida à condição de escrava e prémio de Aquiles. Mas, num tempo em que "o silêncio assenta bem às mulheres", as histórias para contar partilham-se nas sombras. E, da sua posição discreta, Briseida vê os conflitos dos homens, a crueldade dos homens, a brutalidade da guerra... e o seu coração cheio de ódio transforma-se também em algo diferente...
É difícil escolher um ponto para começar a falar sobre este livro, pois todo ele forma uma unidade perfeita. Mas talvez importe realçar, acima de tudo, a escrita e a forma como a autora confere à sua protagonista uma voz tão eficaz na melancolia poética como na descrição certeira dos acontecimentos mais brutais. Tudo parece ter o encadeamento certo: os grandes momentos de conflito, os rasgos de emotividade, a inevitável análise que Briseida faz das suas circunstâncias e daquilo que a rodeia e ainda as frases memoráveis que tornam a longínqua guerra de Tróia num acontecimento tão real como actual. É como estar lá com ela. É sentir tudo com ela. E que mais se pode pedir a um livro que tão facilmente nos transporta para o seu interior?
Outro aspecto que sobressai é que, embora grande parte das personagens deste livro sejam sobejamente conhecidas - ou não fosse esta uma reconstrução da Ilíada - a visão com que ficamos é, ao mesmo tempo, familiar e diferente. Familiar, pois os pontos essenciais continuam presentes em toda a sua força. Diferente, porque são vistos de outra perspectiva e complementados por toda uma história oculta das figuras invisíveis da história. É uma história conhecida... até certo ponto. Mas tem também muito de novo.
É, contudo, na complexidade das emoções que está a derradeira força desta história. É fácil, desde o início, sentir empatia pela mulher encurralada numa cidade em vias de cair, tendo pela frente apenas duas perspectivas: morte ou escravidão. Mas, com o desenrolar dos acontecimentos, tudo se aprofunda e expande para uma maior - e mais impressionante - ambiguidade. Troiana escrava de gregos, Briseida conhece bem o ódio e a impotência, mas as relações que vai estabelecendo envolvem esses sentimentos numa camada de outras emoções mais complexas. Além disso, é particularmente brilhante a forma como esta ambiguidade é transposta para a caracterização dos grandes heróis. Embora escrava de Aquiles, Briseida vê-o como mais do que o homem cruel que lhe matou a família e a escravizou - sendo certo, porém, que nunca deixa de ver essa faceta. E assim, tudo avança num equilíbrio delicado, onde ódio, afeição e algo de intangível algures no meio se entrelaçam numa teia comovente.
Maravilhosamente escrito, fortíssimo na construção dos cenários e da teia de ligações entre as personagens, surpreendentemente emotivo e repleto de pormenores deliciosos, eis, pois, uma narrativa à altura da história intemporal que lhe serviu de base. Intenso, fascinante e belíssimo em todos os aspectos, um livro que é simultaneamente uma visão nova da história da guerra de Tróia... e todo um tratado sobre a complexidade humana.

Autora: Pat Barker
Origem: Recebido para crítica

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