quinta-feira, 29 de outubro de 2020

A Axila de Egon Schiele (André Tecedeiro)

Da arte da fuga à permanência da memória. Do contemplar de um mundo ao longe ao lavar as mãos pelo fogo para sentir mais de perto. Da cinza do interior às cores - e ao escuro - do exterior. E de toda uma outra vastidão de imagens difíceis de descrever, mas simultanteamente oníricas e palpáveis. De tudo isto, e mais, talvez, é feita esta antologia poética, voz complexa traçada em poemas breves, mas certeiros e estranhamente universais.
Parte do que torna esta leitura tão marcante é o estranho e fascinante equilíbrio entre uma voz basicamente indescritível e uma familiaridade absurdamente intensa. Talvez devido à brevidade dos poemas, que realça ao máximo o impacto do mais breve dos versos, ou talvez devido ao sentimento latente, que, moldado mais pela projecção das imagens do que pelas palavras que as evocam, se torna fácil de compreender, o que é certo é que, embora seja difícil apontar aspectos concretos, a impressão que fica é profunda, intensa e memorável.
Outro aspecto notável é a nítida sensação de que todo o percurso é algo pessoal. E não pessoal para o autor, mas para quem lê. São versos fixos, palavras definidas e, nalguns casos, visões muito claras, mas a verdade é que cada uma destas imagens ganha uma forma diferente consoante as emoções e impressões que desperta. E claro que isto se aplica um pouco a todos os livros, mas este em particular realça em toda a sua glória o facto de que cada leitor lê um livro diferente - ainda que as palavras que lá estão sejam as mesmas.
Também aqui uma palavra se repete: brevidade. E um brevidade impressionante. Alguns dos poemas são compostos por um único verso e, ainda assim, não lhes falta nada. Outros alongam-se um pouco mais, traçando imagens mais intrincadas, evocando sentimentos mais profundos. Mas todos têm precisamente a dimensão certa, formando cada um um todo independente que, no conjunto desta antologia, forma algo maior que a soma das partes.
Surpreendentemente viciante para um livro de poesia e com um equilíbrio brilhante entre cadência e tom, fluidez e brevidade, trata-se, em suma, de um daqueles livros que - surpreendentemente, mais uma vez - se devora de uma assentada, exigindo, no entanto, múltiplos regressos aos muitos locais onde marcou. E é ao mesmo tempo aberto e pessoal, vasto e simples, belo e poderoso. Numa palavra: memorável.

1 comentário:

  1. Muito obrigado pelas suas palavras, Carla! Fico muito contente por ter gostado deste livro ��

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