domingo, 11 de outubro de 2020

Pequenos Acidentes (Sarah Vaughan)

 Jess é uma mãe dedicada, do tipo que faz tudo pelos filhos e se esforça até à exaustão para que tudo seja perfeito, mas parece andar mais abatida desde o nascimento de Betsey. Liz é uma das suas melhores amigas, mas o seu trabalho como pediatra e as suas próprias complicações pessoais fizeram com que as duas se afastassem um pouco. É, pois, um choque quando Liz é informada de que Jess está nas urgências. Betsey tem uma lesão no crânio e a explicação apresentada por Jess não parece bater certo com aquilo que Liz pode ver. Subitamente, começa a formar-se uma suspeita. E se foi Jess a responsável? Será possível? E, se assim for, será que Liz alguma vez a conheceu realmente?
Uma das principais qualidades deste livro - e tem bastantes - é a forma como, do primeiro capítulo até às últimas páginas, a autora consegue manter sempre viva a aura de mistério que envolve toda a situação. Alternando entre diferentes personagens, apresenta múltiplas possibilidades para explicar o sucedido, possibilidades essas que vão ganhando força face às novas revelações que vão surgindo, mas também à interacção entre personagens, o que faz com que as perspectivas vão mudando, alterando também a opinião de quem lê. A verdade final pode ser só uma, mas cada personagem tem os seus pontos de vista e a forma como estes influenciam a percepção das outras personagens é algo de particularmente fascinante.
Outro aspecto interessante surge da própria natureza do caso e da constante ambiguidade que o envolve. Ou foi acidente ou foram maus-tratos. Ou poderá haver outra explicação? Esta dúvida domina grande parte do enredo, mas é apenas o início de uma ambiguidade mais vasta, pois nenhuma das personagens é linear. Jess debate-se com as suas obsessões e dúvidas, tomando decisões impulsivas e alimentando as suspeitas que recaem sobre ela. Liz é, para todos os efeitos, uma médica competente, mas assombrada pelos erros e pelos fantasmas da sua própria família. Ed ama a mulher e quer
acreditar nela, mas o facto de ser um marido ausente faz com que tenha menos conhecimento do que devia. E há ainda outras figuras que, de presença mais discreta, têm também, à sua maneira, histórias e sentimentos complexos.
Claro que, tendo em conta tudo isto, não surpreende que haja também um grande impacto emocional. Surge logo nas primeiras páginas, com a sua visão de isolamento e desespero, seguida da possibilidade de uma agressão a uma criança. E mantém-se ao longo de todo o livro, expandindo-se para lá do mistério central para a vida familiar das várias personagens e para as relações de afecto e de amizade que, com os seus desvios e peculiaridades, parecem, ainda assim, ligar todos os intervenientes. Há, além disso, momentos verdadeiramente poderosos, que, além de estarem geralmente relacionados com uma grande revelação, tornam as personagens mais próximas, mais vivas. Mais reais.
O que fica deste livro é, pois, a imagem de uma história muito marcante. Intenso, surpreendente, emotivo e particularmente eficaz na sua construção de uma zona cinzenta para o que move as diferentes personagens, cativa da primeira à última página e fica no pensamento bem depois do fim... tal como as personagens que o habitam, aliás.

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