Ao descobrir que o marido lê o seu diário, Irene decide usá-lo para o manipular, talvez na esperança de que, se o fizer da forma adequada, seja esse o elemento que falta para pôr fim à sua relação disfuncional. Passa, então, a manter dois diários: um, guardado no cofre de um banco, onde descreve os seus verdadeiros pensamentos e acções; o outro, no sítio onde sempre esteve, onde escreve o que quer que Gil saiba, quer seja verdade ou não. Enquanto alimenta as inseguranças do marido, as relações no seio da sua família deterioram-se ainda mais. Entre Irene e Gil, a atracção funde-se com o ódio. Para as crianças, são o medo e a insegurança os elementos dominantes. E, na tentativa de quebrar um relacionamento que, por vezes, parece ser uma prisão, há uma inevitável tragédia à espera de acontecer...
Perturbador seria um bom adjectivo para caracterizar este livro. Perturbador pelos padrões de comportamento das personagens, que ora criam momentos enternecedores, ora estão na base de situações revoltantes, e também pela forma como a manipulação revela as piores características dos protagonistas. A relação entre Gil e Irene é completamente disfuncional e, em consequência, também o são as suas interacções com os filhos. O resultado é uma história de emoções contraditórias, em que é possível sentir empatia para com uma personagem e, algumas páginas depois, passar a odiar as suas atitudes.
É certo que isto se aplica essencialmente aos adultos, o que serve de base para um intenso contraste entre a constante tensão que liga Irene a Gil e a inocência temerosa dos filhos que, ora vítimas, ora espectadores, ora razões para o que está a suceder, procuram, nas tentativas de encontrar uma solução, por mais improvável que seja, o único refúgio para a situação que estão a viver. Também esta situação contribui para a ambiguidade entre revolta e empatia que se estabelece ao longo de todo o livro e que culmina num final que, apesar de um pouco brusco, é também emocionalmente muito forte.
Todas as complexidades estão na história. A escrita é, no geral, bastante simples, mas construída com uma fluidez que deixa para os acontecimentos todo o impacto. É, portanto, na estranheza do enredo e na forma como as personalidades se definem pela ambiguidade dos sentimentos que evocam que está a grande força deste livro. Uma história que é tudo menos leve, que se define pelas sombras das suas personagens, mas que se lê, ainda assim, a um ritmo compulsivo. Uma boa leitura, portanto.
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