A vida de Gustavo sempre se definiu pelo medo: medo das pessoas, medo dos espíritos, medo da morte, dos conflitos, da guerra. Medo de ficar, medo de partir. Medo de tudo. Mas, nascido numa casa onde não se falava de política, Gustavo foi, apesar de tudo, interessando-se pelos subversivos e encontrando um lugar para si num país em mudança. Mas agora os anos passaram e só ficou a memória do que ficou para trás - e o medo, ainda e sempre o medo. Será, talvez, finalmente o momento de ousar?
De uma simplicidade aparente, mas abrangendo praticamente uma vida inteira, este é um livro em que, apesar do contexto delicado em que tudo decorre, é mais a vida interior do protagonista o factor dominante do que propriamente o seu percurso através de um país em mudança. Pelo caminho de Gustavo - como interveniente ou como espectador - passam muitas das grandes dificuldades do seu tempo: o medo da denúncia, o necessário secretismo acerca de certas formas de arte, a iminência de uma partida para a guerra e as possíveis consequências. E este contexto está bem presente em todo a narrativa, mas mais como pano de fundo para o que é afinal o grande problema de Gustavo: o medo constante.
Nem sempre é fácil simpatizar com as personagens, em parte talvez porque algumas delas parecem estar apenas de passagem, mas principalmente por serem vistas da perspectiva de Gustavo. E, claro, há personagens de que é simplesmente impossível gostar - mas, dada a sua posição, isso faz todo o sentido. Ainda assim, e se nem as escolhas do próprio Gustavo são sempre fáceis de entender, há algo no seu percurso - na forma como lida com o medo, fugindo ou ficando, mas raramente enfrentando - que é fácil de identificar. Nunca é fácil fazer escolhas e muito menos quando se tem algo a perder. E, num tempo como o de Gustavo, uma certa dose de medo seria provavelmente uma segurança.
Tudo é contado de forma relativamente sucinta, ficando, em alguns pontos, uma certa vontade insatisfeita de saber mais. Ainda assim, e apesar da relativa brevidade, os elementos essenciais - as emoções, o crescimento, a perspectiva pessoal de um mundo em mudança e, claro, o sempre presente medo - são muito claros e, se nem todas as opções são de molde a inspirar simpatia... bem, a verdade é que não há seres humanos perfeitos.
No fim, fica a sensação de uma viagem aparentemente simples, feita de um protagonista imperfeito, de um contexto difícil e, acima de tudo, de sentimentos fortes. Porque o medo existe, não é? E todos o conhecemos. E é esta proximidade das emoções, ainda que nem sempre das personagens, que fica na memória a guardar o espacinho desta cativante e agradável leitura.
Título: A Volta ao Medo em Oitenta Dias
Autor: José Jorge Letria
Origem: Recebido para crítica
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