As regras da convivência são, na verdade, muito simples: respeitar as leis de Deus e ser sério. Só que a verdade é que isso nunca é assim tão simples. Em Benomilde, todos os olhos vêem e todos julgam - e o medo é a única verdade absoluta. Que o diga a criança que faz uma lista de pecados para não se esquecer de nenhum. O velho que assiste aos julgamentos na televisão como se, a qualquer momento, a sentença se pudesse virar para ele. Ou o novo padre, que, acabado de chegar, inspira dúvidas devido ao seu vestuário e sociabilidade. É que não basta ser sério: é preciso parecer. E quem define, afinal, as regras dessa seriedade?
Oscilando entre as histórias de diferentes personagens em diferentes momentos da linha temporal, mas visto essencialmente da perspectiva de uma criança em crescimento, este é um livro que surpreende, em primeiro lugar, pelo equilíbrio entre a complexidade do cenário que apresenta e a simplicidade com que tudo isso é narrado. Talvez por o narrador ser uma criança, ou talvez pela eficiência com que as diferentes facetas da vida em Benomilde são resumidas ao mais marcante e essencial, a verdade é que cada momento - mais simples ou mais elaborado - deixa uma marca. Além disso, ao alternar os diferentes percursos, cria-se também uma ligeira aura de mistério, que, aliada à brevidade, torna a leitura estranhamente viciante.
Há ainda um outro aspecto particularmente memorável. A história pode ser ficção, e uma ficção feita de muitas pequenas histórias, mas não deixa de se aproximar em muito de uma realidade não muito distante. A ideia do que é uma pessoa "séria" - temente a Deus, com um comportamento respeitável, o controlo da sua casa (ou a devida obediência, dependendo da posição no seio familiar) e incapaz de qualquer tipo de transgressão - não é algo que se tenha esbatido por completo. E este retrato de um meio rural em que são tão rápidas as acções como os julgamentos facilmente se pode transpor para a realidade, despertando assim várias questões pertinentes na mente do leitor.
E claro, importa ainda referir a escrita e, acima de tudo, a facilidade com que o autor constrói uma perspectiva marcante ao narrar os acontecimentos do ponto de vista da que será, provavelmente, uma das personagens mais inocentes de toda a narrativa. A visão um tanto estreita, mas tão cheia de possibilidades que os outros não vêem, de uma criança que conhece apenas as regras e os medos incutidos através da sua educação faz com que tudo ganhe uma perspectiva mais definida, mais clara. O certo e o errado - que nunca são opostos lineares - ganham uma nitidez diferente ao serem expostos por este olhar. E esta inocência traz também fluidez, naturalidade - mesmo quando o que está a acontecer é tudo menos natural.
Retrato de uma sociedade de aparências e, acima de tudo, de um pensamento que nem sempre está tão longe quanto se julga, trata-se, portanto, de uma história de crescimento e, ao mesmo tempo, de descoberta de que a vida nunca é tão simples quanto as regras sociais a querem fazer parecer. História de gente "séria" - e do que é isso de se ser sério - num relato memorável e impressionante, que se lê com a máxima leveza, mas que se entranha no pensamento muito depois de terminada a leitura. Recomendo.
Título: Gente Séria
Autor: Hugo Mezena
Origem: Recebido para crítica
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