O mundo tal como era despedaçou-se quando as pessoas começaram a ver algo indescritível e a enlouquecer em resultado disso. Agora, são poucos os sobreviventes e a única protecção possível é a cegueira. Malorie, com dois filhos pequenos e sem mais ninguém por companhia, levou anos a preparar-se para o que precisa de fazer. Isolada em casa, treinou as crianças para ouvir, para estarem atentas a tudo. E agora, tem finalmente de fazer o que nunca julgou possível naquele novo mundo de escuridão: sair de casa, descer o rio e abrir os olhos. É a única esperança que lhe resta - seguir as instruções que lhe foram dadas. Mas lembra-se demasiado bem de tudo aquilo que passou. Será capaz de o fazer, mesmo sabendo que não tem outra hipótese?
Assustador seria uma boa palavra para descrever este livro - e assustador em vários sentidos. Primeiro, pelo cenário que traça, com um mundo onde ver significa loucura e a única forma de sobrevivência é não ver e a inevitável insensibilização que se segue. Há quem sugira cegar crianças, há quem queira fechar a porta a quem procura auxílio, há quem construa teorias e possibilidades para explicar o inexplicável - e esteja disposto a tudo para as pôr à prova. E, no centro de tudo isto, há vidas a vir ao mundo, vidas que lutam por se aguentar, gente que procura fazer o melhor possível em circunstâncias impossíveis. Circunstâncias em que tudo é estranho e perturbador - e que dão forma a um percurso igualmente perturbador e fascinante.
É assustador também pelos sentimentos que provoca. Basta a intensidade do enredo para tornar a leitura viciante, mas há algo de mais profundo subjacente a toda a narrativa. O caminho de Malorie, presente e passado, está pejado de choques e perdas e dúvidas e revelações e cada um deles alimenta um pouco mais a sensação de inevitabilidade que parece pairar sobre todo o enredo. O mundo de antes já não existe. Malorie sabe-o e essa certeza vai sendo confirmada a cada novo desenvolvimento. E com ela vem a sensação opressiva de se estar num mundo inevitavelmente limitado - onde, da vida, se desceu à simples sobrevivência. Vê-lo em Malorie e nas outras personagens é senti-lo também, de certa forma, e isso deixa inevitavelmente a sua marca.
Tudo converge num crescendo de intensidade que é algo de avassalador, culminando num final que, não dando todas as respostas, parece abrir uma nova fase de possibilidades. Muito fica por explicar e, para algumas personagens, o que realmente lhes aconteceu permanece também envolto em mistério. Mas num mundo de cegueira e de loucura, onde não ver é, muitas vezes a única resposta, não saber faz também todo o sentido. E, mais do que curiosidade insatisfeita, fica-se com a sensação de chegar ao mesmo ponto onde Malorie se encontra: num ponto de viragem para algo que talvez possa ser melhor.
Intenso, viciante, angustiante e perturbador, eis, pois, um livro que apresenta uma realidade diferente - para, a partir dela, virar do avesso o que julgamos constante e real. Fascinante desde a primeira página e memorável em todas as suas facetas, um livro que não posso deixar de recomendar. E que fica na memória... por todas as razões e mais algumas. Muito, muito bom.
Título: Às Cegas
Autor: Josh Malerman
Origem: Recebido para crítica
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