Vivem no Canadá e foi lá que ele nasceu, mas a história da sua vida vem da Rússia. Foi em Chernobyl que a Babushka respirou os ventos atómicos que agora lhe estão a destruir os pulmões. E ele tem de fazer alguma coisa, ou vão separá-lo do irmão e levá-lo para longe e a Babushka vai morrer longe da neve russa da sua infância. É novo, mas já se sente um homenzinho, e ouviu falar de um cato que, ao que tudo indica, pode ajudar. Por isso, com a mais improvável das ajudas, lança-se numa longa viagem através do continente - na esperança de encontrar a salvação para a sua Babushka. E talvez um futuro...
Narrado na primeira pessoa pela voz de uma criança, este é um livro em que, desde muito cedo, se afirma um contraste brutal: o da ingenuidade do protagonista, que acredita no que vê nos filmes, no que lê em livros que não entende e no que vai captando das suas impressões, ante a crueldade da vida tal como ela é. E o máximo exemplo disso é a forma como vê a situação da avó, procurando nos locais mais improváveis uma solução mais impossível. Mas há mais: a forma como interpreta as circunstâncias do que o rodeiam, em particular de Matt, mas não só, realça esse duro contraste, reforçando, mais uma vez, a inocência e a percepção do seu lugar no mundo.
Ora, esta inocência desperta impressões curiosas. Por um lado, há momentos deliciosamente divertidos, como as análises tetralógicas (não, não me enganei) do protagonista. Por outro, fica um aperto no coração em situações como as conversas do narrador com os médicos da Babushka. E, destas duas facetas, emerge um estranho e delicado equilíbrio: este protagonista sem nome é todo um rosto para a humanidade, pondo em evidência, através da sua ingenuidade, todas as complexidades e agruras do mundo. E é isso, acima de tudo, que fica na memória ao terminar esta história: pode-se ver o mundo com olhos inocentes - mas toda a inocência chega ao fim. Nem tudo é possível.
Mas, apesar de todo o brilhantismo que há na história, (e há-o em abundância), há ainda um outro aspecto a elevar um pouco mais esta narrativa: a escrita em si, claro.Natural, envolvente, introspectiva, quando assim tem de ser, directa nos momentos em que a história o exige. Com um ritmo que se ajusta na perfeição a cada acontecimento e pensamento do protagonista. Belíssima, harmoniosa, sempre cativante - poética nos momentos mais belos, cruel nos de maior crueldade. E evocativa em momentos tão pertinentes como o da "cidade das partes suplentes", com os óbvios paralelismos que evoca.
E tanto mais haveria a dizer sobre este livro - mas não sem estragar o prazer da descoberta. Por isso, fico-me por aqui: pela recomendação incondicional e sem reservas deste livro que projecta sobre as sombras da realidade a pureza do mais inocente dos olhares. Magnífico.
Título: A Avó e a Neve Russa
Autor: João Reis
Origem: Recebido para crítica