domingo, 23 de junho de 2019

A Rapariga que Veio do Frio (Gilberto Pinto)

Algo de estranho se passa no Porto. Vários homens ligados ao tráfico de mulheres foram encontrados mortos pela cidade e agora também o jornalista que andava a investigar o caso acaba de ser descoberto, também morto, no seu carro. No mesmo local, no interior de um apartamento, o cadáver de uma rapariga com um violino nos braços. Nasce assim uma possível história para acompanhar, mas para o jornalista Leonardo Pedra é também mais do que isso. Da noite anterior, não guarda quaisquer memórias, mas o colega enviou-lhe uma fotografia do seu carro bem perto do local do crime. E as poucas pistas que tem para seguir apontam mais para o seu passado do que para qualquer outro tipo de resposta...
Oscilando entre dois protagonistas e duas formas de contar a história, é na aura de mistério que envolve as possíveis ligações entre estas duas linhas do enredo - e, claro, todos os incidentes que as rodeiam - que reside a grande força deste livro. De um lado, Aníbal, com a sua lealdade talvez deslocada a um espaço e o seu papel de guardião de segredos sombrios, vai desvelando um passado que tão importante será para o desfecho dos acontecimentos. Do outro, Leonardo, com a memória turva, a certeza de que algo se passa e a sensação de estar dividido entre a necessidade de respostas e partes da sua vida que não quer enfrentar, prepara caminho para uma descoberta que segue para o leitor o mesmo ritmo que para as personagens. O resultado é um enigma constante, que mantém acesa a vontade de saber o que acontece a seguir e maximiza o impacto das revelações finais.
Embora as circunstâncias das personagens gerem uma certa empatia, a proximidade é algo que se vai estabelecendo gradualmente e de forma limitada, talvez porque ninguém é linearmente bom nesta história. Ainda assim, se inicialmente isto gera uma certa sensação de distância, fazendo com que a leitura flua um pouco mais lentamente, com o adensar do enredo as coisas tornam-se mais intensas, ao ponto de, a partir de determinada altura, ser difícil parar de ler antes do fim.
E há ainda um outro aspecto a ter em conta: é que, embora a história gire maioritariamente em torno da morte de Sofia e de tudo o que essa traz consigo, há outras questões a virem à tona. Temas como os vícios secretos dos poderosos e a sua impunidade, a brutalidade reservada às vítimas de tráfico humano e as repercussões que um único segredo sombrio pode ter em múltiplas vidas estão bem presentes ao longo deste livro, acrescentando complexidade ao mistério e, ao mesmo tempo, apelando à reflexão.
Trata-se, pois, de um livro que, da sensação inicial de mistério e de estranheza, evolui para uma cativante intensidade, que se vai expandido a cada nova revelação para culminar num final surpreendente e equilibrado. Cativante desde o início, torna-se gradualmente mais viciante, para se gravar depois na memória como uma intrigante e muito agradável leitura.

Autor: Gilberto Pinto
Origem: Recebido para crítica

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