quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Mahatma Gandhi (Maria Isabel Sánchez Vegara e Albert Arrayás)

Desde muito novo que o pequeno Mohandas descobriu que a violência nunca podia ser a solução. Por isso, e tendo deparado com vários tipos de injustiça ao longo da sua vida, assumiria um papel na luta contra a discriminação e pela independência do seu país. Sempre de forma pacífica. Esta é a história de Mahatma Gandhi - concisamente contada aos mais novos.
Parte do que torna os livros desta colecção tão cativantes é que, embora reduzindo uma biografia inteira a muito poucas páginas, conseguem sempre realçar a mensagem essencial. Neste caso, é do valor da manifestação pacífica e da recusa da violência que se trata, e isso é algo que fica bem vincado, mesmo que a biografia completa de Gandhi seja algo infinitamente mais vasto. É um livro infantil, e a simplicidade importa. Neste livro, a simplicidade faz com que a base essencial esteja bem presente, numa leitura breve quanto baste, mas perfeitamente capaz de transmitir ideias e de despertar a vontade de saber mais.
Também as ilustrações contribuem para dar mais vida a esta pequena história. Retratando, como habitual, um protagonista criança (ou não se chamasse a colecção Meninos Pequenos, Grandes Sonhos), e acompanhando depois o seu crescimento até à imagem aproximada que todos conhecemos da figura adulta. Além disso, para quem já leu vários livros desta colecção, é interessante notar que diferentes ilustradores acrescentam um toque de diferença o que faz com que, embora partindo de uma premissa semelhante, cada livro desta colecção tenha uma natureza distinta.
E há ainda o ritmo e a rima, que, associados à brevidade do texto, fazem deste livro uma belíssima opção para ler em voz alta, em jeito, por exemplo, de história para adormecer. É que há nas palavras uma certa cadência que, além de tornar a leitura mais fluída, lhe confere um interessante embalo.
Breve e simples, mas muito bonito, trata-se, pois, de mais um belo livro para dar a conhecer aos mais novos uma importante figura histórica. Além, claro, e como é característico desta colecção, de uma bela forma de mostrar às crianças que até os grandes sonhos podem ser realizados.

Título: Mahatma Gandhi
Autores: Maria Isabel Sánchez Vegara e Albert Arrayás
Origem: Recebido para crítica

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

A História Secreta da Humanidade (Michael A. Cremo e Richard L. Thompson)

Segundo a versão globalmente aceite, o homem tal como o conhecemos terá surgido há cerca de cem milhões de anos. Mas aparentemente nem todas as provas descobertas confirmam essa teoria. Há descobertas anómalas, achados que se perderam ou que foram desacreditados e outros que, por receio de possíveis consequências, foram mantidos no segredo dos deuses. É sobre estes achados esquecidos, bem como possíveis interpretações alternativas para os considerados credíveis, que os autores deste livro se debruçam para apresentar uma possibilidade alternativa: a da existência de vestígios do homem anatomicamente moderno remontando a milhões de anos antes da data globalmente aceite.
Algo que é importante começar por dizer acerca deste livro é que dificilmente será uma leitura leve e muito menos rápida. É que, mais do que expor uma teoria alternativa global, os autores dedicam-se a analisar as descobertas caso a caso e interpretação a interpretação. O lado positivo é que isto permite que a visão global nasça da acumulação pura e dura de achados e provas. A contrapartida é uma leitura muito pausada e exigente - ainda que também bastante compensadora.
Dito isto, a pergunta que surge é, inevitavelmente, se vale a pena o esforço. E a reposta é também evidente: sim. É que esta análise caso a caso, além de permitir visualizar um todo mais fundamentado, abre portas a uma ponderação mais aberta. Entre os muitos achados abordados neste livro, há aqueles que foram amplamente interpretados como fraudes, os que ficaram esquecidos, os que foram aceites, mas com uma única explicação possível e ainda o muito que não tem ainda resposta. Caso a caso, é possível formar posições. E o mais interessante é que, embora muitos destes achados sejam de descoberta relativamente antiga, as possibilidades não estão fechadas. O que o livro consegue é, pois, mais do que dar respostas definitivas e absolutas (até porque não existem), sugerir outro tipo de explicações e teorias, o que resulta numa inegável vontade de saber sempre mais.
E, claro, há ainda um último ponto a considerar. É que, independentemente dos aspectos específicos, esta análise de teorias alternativas, com tudo o que diz respeito a provas descartadas, perdidas ou possivelmente distorcidas, deixa em aberto questões sobre a forma como as ideias preconcebidas influenciam a interpretação de uma descoberta. Acaba por ser também matéria para reflexão, principalmente quando aplicada a uma área tão dependente de teorias e interpretações.
Não, não é uma leitura leve, e muito menos rápida. Mas, com a sua multiplicidade de achados, teorias, referências e interpretações, traça uma perspectiva muito interessante da teoria da evolução do homem e dos elementos que a fundamentam. E, mesmo sem dar uma resposta final e definitiva para estes mistérios, congrega um vastíssimo conjunto de informação relevante. Basta isto para fazer uma boa leitura? Sem dúvida.

Autores: Michael A. Cremo e Richard L. Thompson
Origem: Recebido para crítica

Para mais informações sobre o livro A História Secreta da Humanidade, clique aqui.

terça-feira, 29 de outubro de 2019

Elementar, Meu Caro Mendeleev (Mark Barfield e Lauren Humphrey)

O mundo é feito de elementos, de partículas aparentemente indivisíveis com diferentes propriedades e que se agrupam em diversos compostos. E o mundo dos elementos é também um mundo de descoberta constante. Houve quem pensasse, em tempos, que eram apenas quatro - água, terra, fogo e água - mas a verdade revelou-se um pouco diferente. Hoje, continuam a ser descobertos novos elementos e, para os organizar, existe a tabela periódica. Mas o que diferencia, afinal, todos estes elementos?
Quem se lembra das aulas de físico-química dos tempos de escola, lembra-se também, provavelmente, das inúmeras informações associadas à tabela periódica: tipos de elemento, números atómicos, protões, electrões, ligações moleculares... enfim. A grande qualidade deste livro é que, além de mostrar que todas estas coisas não precisam de ser assim tão confusas, facilmente desperta curiosidade para o mundo da química e das suas grandes figuras. Para isso contribuem em muito as várias BDs atómicas, dedicadas a diferentes momentos da evolução da química em geral e do estudo dos elementos em particular.
Sendo um livro pensado para os mais novos, destaca-se também o equilíbrio bastante eficaz entre a simplicidade necessária para tornar a leitura acessível e a abundância de informação existente sobre cada elemento. O que acontece é uma explicação sucinta das propriedades e usos de cada elemento, nalguns casos complementada com uma ou outra experiência interessante. Haveria mais a desenvolver? Naturalmente. Não se resume a química em sessenta páginas. Mas é interessante notar que a sensação que fica deste livro é que toda a informação... bem, elementar está lá.
Não sendo propriamente um aspecto dominante, já que grande parte do livro é dedicada à caracterização dos elementos, importa ainda fazer referência à forma como esta abordagem é construída. Primeiro, Sherlock e os seus assistentes fazem desta descoberta da tabela periódica um trabalho de detective, o que faz desta leitura uma aventura. Depois, as ilustrações que povoam o livro permitem uma percepção mais fácil das coisas, além claro, de uns quantos laivos de humor (principalmente nas bandas desenhadas) a tornarem a leitura mais leve.
E o que fica, uma vez somados todos estes elementos, é a imagem de um livro didáctico e também muito cativante, além de surpreendentemente completo para o seu reduzido tamanho. Uma forma interessante de aprender química... ou de recordar conhecimentos que ficaram perdidos lá para trás.

Autores: Mark Barfield e Lauren Humphrey
Origem: Recebido para crítica

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Gideon Falls, Vol. 1: O Celeiro Negro (Jeff Lemire, Andrea Sorrentino e Dave Stewart)

Enviado para Gideon Falls para substituir o seu recentemente falecido antecessor, o padre Fred está longe de imaginar o quão necessária é a sua presença ali. Leva consigo um passado conturbado, daí que, quando as mortes começam a acontecer, torna-se imediatamente o principal suspeito. Mas não é de crimes normais que se trata. Há uma lenda em Gideon Falls que fala num misterioso celeiro negro, que aparece e desaparece deixando no seu rasto sinais contraditórios e crimes sem explicação. E é essa mesma lenda que paira sobre Norton Sinclair, um jovem aparentemente perturbado que procura no lixo a forma de lidar com a presença maligna do celeiro que lhe assombra os sonhos...
Há uma fascinante sensação de familiaridade na premissa de um mito urbano - ou, neste caso, rural - em que poucos acreditam realmente, mas que é a única explicação possível para o que permanece inexplicável. Há lendas assim espalhadas por diferentes locais. E é essa sensação de familiaridade que torna tão fácil mergulhar de cabeça nesta história e sentir a quase palpável de mistério e de possibilidade que rodeia Gideon Falls e o seu misterioso celeiro negro. Além de gerar uma curiosidade quase imediata - que vai do misterioso comportamento de Norton às possíveis explicações para a existência e aparições do celeiro -, gera uma forte empatia devido à vulnerabilidade e ao passado difícil dos protagonistas. Some-se a isto o impacto de uma manifestação que poucos vêem e ainda menos acreditam e o resultado é verdadeiramente intrigante.
É uma história de horror, do tipo de horror inominável que existe e se manifesta, mas que não se consegue explicar, pelo menos ainda. E é particularmente impressionante que esta inexplicabilidade se manifeste tão bem em termos de elementos visuais. Tudo neste livro é diferente, desde a estrutura das páginas (bem longe dos quadros organizadinhos e lineares) ao próprio traçado dos fundos (com destaque especial para os desenhos infantis de Norton), passando pela visão algo esbatida e fantasmal do celeiro e sem esquecer a fascinante bizarria dos momentos dedicados ao que vai na cabeça das personagens. Mais do que ler sobre um lugar bizarro, é quase como entrar nele, e embora nem toda a história se passe dentro do celeiro negro, a sensação que fica ao longo de toda a leitura é a de que, de certa forma, estamos lá sempre.
Sendo o primeiro volume de uma série, escusado será dizer que são muitas as perguntas e possibilidades que ficam em aberto, mas também aqui há um elemento que sobressai. É que este primeiro volume culmina numa grande revelação, do tipo que, longe de dar todas as respostas, encerra, ainda assim, uma fase, abrindo portas para um novo estádio do percurso. Dificilmente poderia fechar de forma mais adequada, com um pico de intensidade, escolhas importantes e uma porta aberta para os novos desenvolvimentos que estão por vir.
Dificilmente se poderia pedir um melhor ponto de partida para esta série cheia de mitos, enigmas e inexplicáveis. Personagens fortes e complexas, uma história cheia de possibilidades e o tipo de arte que transpõe perfeitamente o que se passa com as personagens para a mente do leitor. Uma palavra para descrever este primeiro livro? Brilhante. Sem dúvida alguma.

Autores: Jeff Lemire, Andrea Sorrentino e Dave Stewart
Origem: Recebido para crítica

domingo, 27 de outubro de 2019

A Décima Ilha (Diana Marcum)

Com uma vida pessoal um tanto apagada e a carreira jornalística basicamente estagnada, Diana sente que lhe falta qualquer coisa. Está, no entanto, bem longe de imaginar que aquilo que procura está num pequeno arquipélago algures no Oceano Atlântico. A descoberta surge quase por acaso, num primeiro contacto com a vasta comunidade de imigrantes açorianos a viver na Califórnia. E o apelo torna-se irresistível. Primeiro pelas histórias, depois pelas próprias viagens, Diana encontrará nos Açores um tipo de fascínio e de felicidade que não conhecia.
Parte livro de viagens, parte registo de uma memória pessoal, este é um livro que provavelmente terá um maior impacto em quem já tiver conhecido os Açores. Para quem, como eu, nunca lá estive, tem, ainda assim, o sempre interessante efeito de um despertar de curiosidade e de um apelo à descoberta. A paixão da autora pelas ilhas é palpável e, de certa forma, transmissível. E basta isto, esta tão entusiástica visão pessoal, para fazer com que a leitura valha a pena.
E é de uma visão pessoal que se trata, daí que outro dos pontos fortes é que mais do que de uma descrição de locais e pontos de interesse, é do contacto com as pessoas, das histórias contadas e da própria vivência do local que este livro vive. Não é nem pretende ser um guia, mas sim o relato de uma experiência própria. Daí que, mais do que os cenários deslumbrantes, sejam as histórias partilhadas pelas pessoas com quem Diana se vai cruzando (além, claro, da sua própria história) o que realmente fica na memória.
Não é exactamente leitura compulsiva, principalmente porque as oscilações entre tempos e locais, num livro escrito mais ao ritmo das memórias do que de uma linha temporal precisa, exigem um pouco mais de tempo de habituação. É, ainda assim, uma leitura sempre cativante, seja pela ligação palpável que a autora cria - e transmite - com os locais e pessoas que conhece, seja pelo seu próprio percurso de auto-descoberta.
Somadas as partes, fica a imagem de uma interessante fusão: história de uma viagem, da viajante e da diáspora nascida desse local. Pessoal na experiência, mas muito cativante nos relatos do percurso e, principalmente, das pessoas, um livro muito interessante e envolvente.

Título: A Décima Ilha
Autora: Diana Marcum
Origem: Recebido para crítica

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

Breakers (Doug Johnstone)

Tyler tem dezassete anos, mas parece carregar sobre os ombros todo o peso do mundo. A mãe é toxicodependente. Os meios-irmãos mais velhos arrastaram-no para uma vida de crime. E Tyler tem de manter todas estas forças equilibradas a fim de proteger Bean, a sua irmã mais nova. Mas as coisas estão prestes a seguir por um caminho perigoso, quando Tyler, Barry e Kelly invadem uma casa e, apanhados em flagrante, acabam por fugir depois de Barry ter esfaqueado uma mulher. Pior, a vítima é a esposa de Deke Holt, o principal barão do crime da região. Sobreviveu, mas haverá um preço a pagar por aquele ataque. E eis que, de repente, Tyler dá por si preso entre a violência do seu próprio lar e a sombra que paira sobre a sua cabeça. Nunca precisou tanto de ajuda como agora. Mas poderá aceitá-la, se isso significar arrastar mais alguém para as trevas do seu mundo?
Das muitas coisas que este livro tem de impressionante, a mais memorável de todas é esta: a facilidade com que sentimos e nos preocupamos com uma personagem que tem, afinal, uma vida pouco respeitável. Tyler pode ser mais vítima do que culpado, mas anda de facto a roubar casas no momento em que a história começa. É, por isso, bastante impressionante a facilidade com que o autor faz com que nos importemos com ele, principalmente devido às suas circunstâncias, mas também devido à brilhante construção da sua personalidade.
Tyler tem uma força especial, do tipo que o torna mais vulnerável, e isto é absolutamente evidente desde o início. Não é fisicamente forte, é espancado várias vezes, principalmente pelo irmão, e não é propriamente o tipo de personagem capaz de vencer confrontos físicos. Mas tem muitas outras coisas: um coração no sítio certo, um instinto protector que o faz agir e planear e fazer coisas mesmo quando as consequências podem ser terríveis, e uma enorme e admirável consciência. Que uma personagem assim possa existir num cenário como aquele onde Tyler cresceu é em si mesmo um milagre e é isso que torna a sua história tão fascinante de acompanhar.
A verdade é que, mais do que uma história de crime e de um algo inesperado castigo, esta é uma história de vulnerabilidade. Da de Tyler, acima de tudo, mas também da vulnerabilidade global de viver num mundo em que o conceito de justiça é um conto de fadas há muito esquecido. Da família disfuncional à guerra cada vez mais intensa com os Holt, há em cada elemento uma dura lição. E o final... bem, o final é um tão delicado equilíbrio de fragilidade e força, de trevas e esperança, de... vida e morte, que é impossível não ficar com Tyler e o seu árduo caminho de redenção no pensamento bem depois de terminada a leitura.
Maravilhosamente escrito, emocionalmente devastador e com um elenco brilhante de personagens num caminho tão difícil quanto empolgante, trata-se, pois, do tipo de livro que fica no coração durante muito tempo. Uma gloriosa lembrança de que proteger os nossos pode, às vezes, significar estar-se vulnerável e exposto. E uma belíssima leitura, claro.

Título: Breakers
Autor: Doug Johnstone
Origem: Recebido para crítica

quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Harrow County 2 - Duas Vezes Contado (Cullen Bunn e Tyler Crook)

Desvendados os mistérios da sua natureza e bem vincada a sua posição em Harrow County, Emmy parece ter conseguido afirmar o seu lugar e conquistado alguma segurança. Agora, tenta ser diferente da sua antepassada e usar as suas capacidades apenas para ajudar. Mas a entrada em cena da sua irmã gémea vem pôr em causa a delicada tranquilidade que Emmy conseguiu construir. Kammi vem com intenções sombrias e ambições de poder. Mas Emmy não está tão alheia à realidade como a irmã julga - e continua a existir poder sob a árvore de onde ambas nasceram.
Quando uma série começa tão bem como esta, é inevitável que as expectativas estejam à partida muito altas ao pegar no segundo volume, e também o receio de uma desilusão. Bem, neste caso, esses medos são infundados. Com muito em comum com o volume inicial, a começar pela enternecedora inocência de Emmy, mas também com novos desenvolvimentos, novas entidades a virem à tona e também novas revelações sobre Hester Beck e o seu legado, este segundo livro atinge um equilíbrio perfeito entre a familiaridade do que já vinha de trás e os novos desenvolvimentos.
É também particularmente notável a forma como os contrastes se vão aprofundando, a começar, mais uma vez, pela inocência de Emmy em contraponto aos inúmeros espectros que a rodeiam. Mas há mais: Kammi e Emmy são absolutos opostos, mas são também gémeas, o que cria uma inesperada profundidade emocional na evolução desta fase da história. Vêm de mundos diferentes, mas não deixa de ser relevante o facto de ser a irmã com a vida de luxo quem vem semear o caos. E levam os espectros a ter de escolher um lado, o que acrescenta uma nova complexidade ao mundo das assombrações. Afinal, as meras criações de Hester Beck têm vontade própria, capacidade de decisão, valores, até. Isso é algo de fascinante e abre grandes possibilidades para o que se poderá seguir.
O maior contraste de todos continua, porém, a ser a nível visual. Não só entre cenários, com a monstruosidade dos espectros e as muitas sombras do bosque a contrastar com os tons claros e tranquilos da casa de Emmy, mas também na figura das duas irmãs. São gémeas, mas não podiam ser mais diferentes, e a forma como são retratadas, não só a nível de indumentária, mas principalmente de expressões faciais, põe em evidência essa imensa dualidade.
Feito de densas sombras e de seres monstruosos, mas principalmente da história de uma jovem mulher em luta com o seu legado sobrenatural, trata-se, em suma, de um segundo volume que, além de corresponder inteiramente às expectativas, consegue elevá-las ainda mais para o que se seguirá. Intenso, sombrio e deliciosamente fascinante, um livro que não posso deixar de recomendar.

Autores: Cullen Bunn e Tyler Crook
Origem: Recebido para crítica

quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Lá, Onde o Vento Chora (Delia Owens)

Primeiro foi a mãe que saiu de casa, incapaz de suportar mais a vida que tinha naquele local isolado. A seguir, foram os irmãos. E Kya foi ficando cada vez mais sozinha, primeiro com a sombra dos problemas do pai, depois com a solidão absoluta do pantanal e da imensa natureza em seu redor. Foi crescendo, com a ajuda de uns poucos e a sua própria determinação, mas sem nunca perder a certeza de que qualquer pessoa que entrasse no seu mundo acabaria por a abandonar. Agora, um homem foi encontrado inexplicavelmente morto e as suspeitas não tardam a cair sobre a Miúda do Pantanal, aquela que todos sempre viram como diferente e alimento de todo o tipo de rumores. Mas será Kya realmente responsável pela morte de Chase, apesar de todas as sombras do seu passado. E mais importante ainda: alguém acreditará na sua inocência?
Embora haja uma morte e um mistério entrelaçados nas linhas desta narrativa, mistério esse que contribuirá em muito para a intensidade da fase final, uma das primeiras coisas que importa dizer sobre este livro é que o seu cerne está noutro lugar. Não é a morte de Chase Andrews a linha mais marcante do enredo, mas sim Kya. Kya, criança abandonada, Kya, jovem em crescimento nos braços da solidão, Kya, que, de cada vez que tenta abrir-se um pouco, se depara com muros e abandono. O que realmente fica desta leitura é, pois, acima de tudo, uma impacto emocional devastador, pois é difícil não sentir com Kya, com a sua imensa solidão nos braços da natureza, com a sua mente brilhante perdida no silêncio do pantanal.
É também uma sucessão de sentimentos intensos, que passam da estranheza inicial à empatia, depois à dúvida e a uma convicção precariamente equilibrada até à derradeira resposta. E há em tudo isto uma estranha beleza, que transborda não só da evolução dos acontecimentos, com os muitos momentos marcantes e picos de intensidade a contrastar com a serenidade da relação de Kya com o pantanal, mas também da harmonia das próprias palavras. Há algo de fascinante na voz que conta esta história, como que uma certa poesia. E também isto torna os sentimentos mais fortes, pois a fluidez das palavras torna mais fácil entrar na pele - e no coração - da protagonista.
E há uma morte e um mistério, cuja presença começa por parecer secundária e depois vai ganhando intensidade até se transformar no cerne da fase final. Não é o elemento fulcral, mas acrescenta vida à história. E quanto à sua resolução... bem, é difícil de explicar sem revelar demasiado, mas a impressão que fica é que dificilmente poderia ter sido mais adequada.
Magia nas palavras, emoção a cada instante e uma história que é tanto o desvendar de um mistério como o desabrochar de um percurso de descoberta pessoal entre as sombras: assim é a história de Kya, lá longe, onde o vento choraE que belíssima história que esta é.

Autora: Delia Owens
Origem: Recebido para crítica

terça-feira, 22 de outubro de 2019

Into Bones Like Oil (Kaaron Warren)


A Angelsea é uma casa para casos perdidos, para os que não conseguem viver consigo mesmos e, acima de tudo, são incapazes de dormir. É também uma casa cheia de fantasmas. Ao chegar à casa, Dora não sabe realmente o que esperar, excepto talvez algumas horas de sono, algum castigo pelos seus próprios atos e uma fuga da ideia de que talvez seja ela a responsável pela morte das filhas. Mas há uma profunda estranheza em Angelsea – e uma escuridão mais profunda cerca os seus habitantes.
Sendo uma história de fantasmas – tanto dos que vagueiam pelos locais perdidos como dos que deambulam dentro da cabeça de cada um -, uma das grandes forças deste pequeno mas fascinante livro é a aura de mistério que parece envolver tudo. Do aspecto bizarro e ligeiramente decrépito da casa aos enigmáticos rituais do sono, tudo parece conter a sua medida de mistério, o que faz com que seja absurdamente fácil entrar no mundo destas ínsones personagens – e dos fantasmas que as rodeiam.
Também a escrita em si parece reforçar esta impressão de mistério, com as sombras e pensamentos de Dora a dar vida a um cenário em que tudo parece um pouco assombrado. O passado de Dora ganha vida nos seus pensamentos e o fardo que carrega consigo ganha uma nova dimensão com o surgir das grandes revelações. E os fantasmas… bem, os fantasmas estão em toda a parte, e as suas histórias são simultaneamente sombrias e fascinantes.
Cada personagem traz consigo um pesado fardo e uma história estranha, o que as torna mais complexas e também mais vulneráveis. Faz, então, todo o sentido que tudo esteja envolto em mistério e também que nem tudo alcance uma conclusão definitiva. A vida continua sempre após o final de cada história. E este final é particularmente adequado ao percurso que deixou para trás.
No fim, tudo se resume a isto: um livro relativamente breve contendo uma muito impressionante história de fantasmas em busca da redenção. Maravilhosamente escrito e fascinantemente sombrio, um livro para recordar bem depois de lida a última página.

Título: Into Bones Like Oil
Autora: Kaaron Warren
Origem: Recebido para crítica

segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Saga - Volume Um (Brian K. Vaughan e Fiona Staples)

Alana e Marko pertencem a lados opostos de uma guerra interplanetária, mas quando se conheceram, ela enquanto guarda, ele enquanto prisioneiro, tudo isso deixou de importar. Agora, fugidos do seu próprio povo, acabam de trazer ao mundo uma criança. O amor que sentem pela pequena Hazel pode muito bem ser a única luz numa vida de fuga constante, mas a existência da bebé despertou também o interesse das duas facções em conflito. A perseguição torna-se, pois, ainda mais dura. E, para sobreviverem, talvez precisem de alguma ajuda... peculiar.
Parte do que torna este livro tão impressionante - e, oh, se é impressionante - é a facilidade com que gera um envolvimento emocional quase imediato. Talvez devido à cena inicial, talvez devido à premissa que serve de base a esta história, com o amor entre inimigos a gerar uma nova vida, o que é certo é que há uma empatia praticamente imediata a surgir. Além disso, os sentimentos vão-se intensificando com o evoluir dos acontecimentos, pois entre as fugas, as lutas e as descobertas mais ou menos delicadas, há sempre laços de afecto profundo e momentos poderosos a realçar a força dos laços emocionais.
Também particularmente notável é a teia de relações e possibilidades que surge deste que é apenas o primeiro volume de uma série bastante mais vasta. A linha central está no percurso de Marko e Alana, naturalmente, mas há outros elementos, desde os actos de A Vontade à delicada hierarquia da família do príncipe Robot IV. E, claro, todas estas possibilidades ganham outro impacto pela vastíssima diversidade que parece povoar este universo, pois, sendo uma história intergaláctica, é apenas natural que cada ser tenha características distintas. Características essas que, importa dizer, ganham vida nas páginas com uma estranha e fascinante beleza.
Há ainda um outro delicado equilíbrio a sobressair, algo que pode inicialmente parecer secundário, mas que contribui em muito para o impacto emocional do todo. Além dos momentos de afecto, das cenas de combate e do vincado contraste entre os cenários e habitantes dos diferentes locais, há também vários deliciosos rasgos de humor, que, além de acrescentarem leveza, fazem com que os picos de intensidade seguintes ganhem ainda mais força. E mais. Há o contraste entre este mundo tão diferente, onde todos os seres têm algo de peculiar, e as várias questões relevantes que facilmente se reconhecem como vindas do nosso mundo real. A guerra, com tudo o que tem de questionável; o aproveitamento e escravização dos mais fracos; a transformação do incontrolável em alvo a abater. Tudo isto pode ser transposto - salvo as devidas diferenças - para a nossa realidade, o que faz com que esta história contenha também muito material para reflexão.
Absurdamente viciante, profundamente emotivo e belíssimo em todos os aspectos, das feições e expressividade das personagens à construção dos cenários, passando, naturalmente, pelos brilhantes rasgos de emoção e afecto, trata-se, pois, de um livro imperdível para todos os que gostam de banda desenhada, ficção científica ou simplesmente de uma bela e marcante história. Intenso, fascinante, maravilhoso, um livro - e uma série - a não perder.

Autores: Brian K. Vaughan e Fiona Staples
Origem: Recebido para crítica

domingo, 20 de outubro de 2019

Eu Creio que a Verdade Crua Cura (Nuno Sobral)

Maria Santana tornou-se bruxa mais por acção dos rumores do que por vocação e as suas capacidades vêm-lhe mais da necessidade financeira do que de um hipotético dom. Mas há um genuíno mistério à sua espera e há quem ache que só ela o pode resolver. Briolanja foi recebida pela tia, que fez dela quase escrava e morreu com uns versos enigmáticos nos lábios. Em resultado, há quem diga que o seu espírito renasceu num de três gatos nascidos por volta da hora da sua morte. É para resolver este imbróglio que Maria Santana é chamada. Mas será ela uma bruxa das verdadeiras? Afinal, as bruxas não existem... pois não?
Bastante sucinto e com partes da história narradas de diferentes pontos de vista, uma das primeiras impressões a emergir deste livro é que a sua história dava facilmente para um romance mais extenso. Do que Briolanja passou às mãos da tia, do percurso de Maria Santana, até do pensamento estranhamente científico do padre Zacarias, haveria certamente muito mais a desenvolver. Ainda assim, e apesar desta vontade que fica de conhecer as coisas um pouco mais a fundo, é interessante notar, todavia, que nada falta à história que seja essencial. Não há respostas absolutas e definitivas, é verdade. Mas, tendo em conta o tema e o ambiente, a verdade é que faz todo o sentido que assim seja.
Outro aspecto que sobressai é o curioso equilíbrio que mantém toda a narrativa na constante hesitação entre a dúvida, a certeza da existência e a negação absoluta do elemento sobrenatural. Só no final as respostas aparecem, e este enigma que se vai estendendo até lá chegar torna o enredo mais intrigante, salientando não só os comportamentos mais bizarros das personagens, mas também as múltiplas possibilidades de explicação.
Há como que uma ambiguidade constante, e não deixa de ser interessante vê-la estender-se também à própria escrita. Pausada, descritiva, oscilando entre a suposta omnisciência de um narrador que não intervém e as experiências mais próximas de duas das intervenientes, parece moldar a estranha aura de mistério que envolve toda esta pequena história. E, sendo que nenhuma das vozes é completamente fiável, adensa também o impacto das respostas que, também ambíguas, mas suficientemente esclarecedoras, surgem na fase final.
Surpreendentemente vasto para as suas oitenta páginas, trata-se, pois, de uma história de enigmas, de bruxas que talvez não sejam bruxas e de almas que renascem - ou não - no rasto que deixam no mundo. Intrigante e envolvente, uma boa leitura.

Autor: Nuno Sobral
Origem: Recebido para crítica

sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Bem-vindos a Joyland (Stephen King)

Assombrado por um desgosto de amor, Devin Jones, estudante universitário, aceita passar o verão a trabalhar em Joyland na esperança de esquecer Wendy e amealhar algum dinheiro com que prosseguir com seu percurso académico. Mas o parque de diversões irá alterar a sua vida de muitas e inesperadas formas. Em Joyland, vende-se diversão, mas há também um mistério por resolver e a história de um fantasma que por lá deambula - o da rapariga que foi assassinada numa das diversões. Devin dá por si intrigado pelo mistério e, enquanto se vai descobrindo a si mesmo, criando relações que se revelarão duradouras, começa também a seguir a pista do possível assassino. Mas as respostas estão mais perto do que julga... e é isso que as torna tão perigosas.
Sendo este um livro do mestre do horror, uma das coisas que surpreende é que esta não é uma história particularmente horripilante. E diga-se desde já que isto não é um defeito. Há elementos sobrenaturais, intuições, um fantasma e um criminoso à solta, o que significa que continua a ver tensão, intriga e mistério em abundância. A surpresa é que há também um lado emocional particularmente poderoso.
É, aliás, o forte contraste entre as duas facetas do enredo que torna o livro tão fascinante. De um lado, há o mundo peculiar de Joyland, com a sua linguagem própria, cheio de cor, de som, de diversão e até mesmo de ternura, particularmente nos momentos em que Devin encarna a mascote do parque. Do outro, há o fantasma, o crime por resolver, a sombra constante de algo que ficou por desvendar. E, no meio de tudo isto, há ainda espaço para a descoberta de amizades, para as perdas que, mais cedo ou mais tarde, acabam sempre por acontecer e para a inevitável tristeza da traição vinda de onde menos se espera. Devin traz o desgosto consigo e Joyland fá-lo-á crescer. Por isso, não surpreende - e é, aliás, algo de verdadeiramente notável - que, mais que uma sensação de horror, seja a vaga tristeza rasgada por belos, mas finitos, momentos, a imagem que realmente fica na memória depois de terminada a leitura.
Mas não deixa de ser um livro de Stephen King, o que significa que os enigmas, as presenças sombrias, a sensação ominosa de que algo está para acontecer e até mesmo a visão de que os verdadeiros monstros - os que realmente existem - estão dentro de nós continuam a ser aspectos bem presentes nesta leitura, o que contribui também para que o equilíbrio entre elementos novos e aspectos familiares seja tão cativante.
Stephen King é Stephen King, e este livro não desilude em nada. Intenso, marcante, emocionalmente poderoso e cheio de grandes revelações, prende desde as primeiras páginas e fica na memória bem depois do virar da última página. Misterioso e emotivo em partes iguais e complementares, um livro que não posso deixar de recomendar.

Autor: Stephen King
Origem: Aquisição pessoal

quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Harrow County 1 - Assombrações Sem Fim (Cullen Bunn e Tyler Crook)

Harrow County pode ser um meio pequeno, mas esconde um grande segredo. Em tempos, os seus habitantes mataram uma bruxa que, nos seus últimos momentos, jurou que regressaria para se vingar. Agora, passados dezoito anos, a jovem Emmy mostra sinais de ser capaz de fazer coisas que mais ninguém consegue: curar animais doentes, sentir os espectros que se movem pela floresta... E é no preciso momento em que obtém o seu próprio espectro que percebe que a sua vida corre perigo, pois também as suas origens escondem um grande segredo... e as pessoas de Harrow County juraram matá-la caso ela mostrasse sinais...
É absurdamente fácil mergulhar na história deste livro, não só no que respeita aos mistérios, mas principalmente em termos de ligação emocional à protagonista. É um dos primeiros aspectos a revelar-se e provavelmente a maior das suas muitas qualidades. Bastam as primeiras páginas e a forma como a morte de Hester é retratada para evidenciar o mundo de crenças, superstições e medo do demoníaco e sobrenatural que virá a definir todo este primeiro volume. E a verdade é que é irresistível: da promessa do regresso da bruxa à poderosa descoberta de Emmy de quem realmente é, passando pela inevitável fuga e pelas consequentes revelações sobre Hester e sobre a própria Emmy, é impossível não querer saber mais sobre o que aconteceu a estas personagens. E mais: de que forma Emmy, com aquilo que se esconde na sua natureza, poderá continuar a ser a jovem simples e afectuosa que tanta empatia desperta.
Bastaria isto para a leitura valer a pena. Mas há muito mais. Há a construção da lenda de Hester e o seu delicado equilíbrio entre o diabólico e o divino. Há o fascinante enigma da forma como Emmy surgiu. Há a estranha beleza dos fantasmas, com o seu fascinante fogo interior. Há... tantos pormenores deliciosos para descobrir neste livro. E mais notável ainda é a forma como todos se enquadram na perfeição num enredo onde há sempre algo a acontecer e em que grande parte dos acontecimentos se centram no perigo e na fuga. Emmy descobre à força os segredos de Harrow County... e o melhor de tudo é que estes - os do primeiro volume - são apenas o início de algo muito mais vasto.
E há mais ainda: na forma como as personagens são retratadas e na forma como parecem rasgar o cenário nas alturas certas. Hester podia muito bem ser uma figura saída de um pesadelo, o que contrasta com uma Emmy de ar bastante inocente. O fogo dos fantasmas e as cores da árvore sinuosa parecem rasgar os tons sombrios de uma história em que as grandes coisas parecem surgir da noite. E o contraste entre as sombras dos bosques e a claridade da vida aparentemente normal só realça ainda mais a premissa de um núcleo de segredos sombrios escondidos num ambiente de aparente pacatez.
Impressionante na história e, acima de tudo, nas personagens, trata-se, pois, de um início fulgurante para uma série que promete muito de bom e de surpreendente. Intenso, sombrio e surpreendentemente poderoso em termos emocionais, um livro para recordar... e uma série para continuar a descobrir. O mais rapidamente possível.

Autores: Cullen Bunn e Tyler Crook
Origem: Recebido para crítica

terça-feira, 15 de outubro de 2019

A Recriação do Mundo (Luís Corredoura)

Berlim, 1943. Perante uma multidão de apoiantes fanáticos, Goebbels faz um exaltado discurso de apelo à guerra total, mas há quem não partilhe totalmente do seu fanatismo. Há movimentos nas sombras e quem queira que o poder alemão passe rapidamente para outras mãos, antes que a guerra resulte numa derrota estrondosa. E há também quem ache que a única forma de virar o rumo das coisas é obter uma arma que altere o equilíbrio das forças. É neste contexto que entra em cena José Bensaúde, judeu português, génio da física e da matemática, retirado de um campo de concentração para prestar auxílio aos cientistas nazis. A sua intervenção alterará o curso da guerra. Mas, mais uma vez, as lealdades mudam... E cada potência tem a sua poderosa rede de espiões...
Uma das primeiras coisas que importa referir sobre este livro é que dificilmente será uma leitura rápida, não porque lhe faltem razões de interesse ou porque seja maçador, mas pela vastidão de detalhes que vai apresentando ao longo da narrativa. É uma história da Segunda Guerra Mundial que segue caminhos diferentes dos da história real, mas estas divergências acontecem gradualmente, daí que a percepção das mudanças aconteça pouco a pouco, num registo bastante pausado, mas sempre interessante e, por vezes, muito surpreendente.
É também uma história que não tem um protagonista dominante, embora, dado o seu papel nos acontecimentos, se possa olhar para José Bensaúde como tal. A história não é apenas a desta personagem, mas antes a dos muitos intervenientes nesta fase divergente do conflito. E, assim, o que acontece é que o livro ramifica-se entre diferentes perspectivas, abrangendo não só os diferentes países, mas também as diferentes forças em movimento em cada um deles.
Daqui resulta um aspecto que desperta alguns sentimentos ambíguos. É que, numa história que se expande tanto para diferentes factores e personagens, acaba por surgir uma certa sensação de distância face a todos estes intervenientes. Sente-se, por vezes, a falta de uma maior proximidade, compensada, ainda assim, por alguns picos de intensidade que, dada a distância geral, acabam por ser também uma surpresa.
Leva o seu tempo a assimilar, portanto. Mas, com a vastíssima construção do seu contexto alternativo, a profusão de detalhes históricos que se mantêm por entre todas essas mudanças e a visão surpreendentemente certeira de meandros onde a guerra funciona quase como um negócio, é, ainda assim, um romance notável. E um livro que, independentemente do tempo que exija, vale a pena conhecer.

Autor: Luís Corredoura
Origem: Recebido para crítica

segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Sophia, A Menina do Mar (Jorge Lima e Cristina Falcão)

Era uma vez uma menina chamada Sophia que, desde muito pequena, imaginava histórias, personagens e poemas. Uma menina que cresceria para se tornar exemplo, voz e magia, tanto nos muitos livros que deixaria ao mundo, mas também no papel escolhido por si de defender a liberdade. Chamava-se Sophia. Sophia de Mello Breyner Andresen. E esta é a sua história.
Escrever uma biografia pensada para os mais pequenos, e principalmente de alguém tão presente como a autora de histórias como A Fada Oriana, será sempre necessariamente um desafio, pois a história de uma vida é sempre mais vasta do que o que cabe num livro e um livro infantil tem sempre de simplificar. Mas este livro específico consegue um equilíbrio especialmente eficaz, pois realça os factos biográficos essenciais, acrescenta-lhe alguns excertos da obra de Sophia e faz dela personagem de sonho - a mistura ideal para uma história elucidativa e também cativante.
Nem só do texto vive um livro infantil e também aqui há algo que se destaca. É que o estilo das ilustrações, bem como os próprios tons, quase parecem evocar a história da Menina do Mar original. Autora e personagem confundem-se, o que faz com que o livro seja também muito interessante para aqueles que, tendo deixado a infância para trás, encontram nestas poucas páginas um regresso àquelas histórias que lemos quando andávamos na escola.
Há ainda um último aspecto a salientar, que diz respeito à forma como esta pequena história é em si mesma um incentivo a ler mais. Mais Sophia e mais livros em geral, pois a imagem de uma pequena Sophia a encontrar nos livros e na imaginação os mundos de que precisava é algo que todos nós, leitores, conhecemos bem. E que os menos leitores talvez devessem descobrir.
Simples quanto baste, e ainda assim completo no essencial, trata-se, pois, de um livro bonito e cativante para dar a conhecer aos mais novos um dos grandes nomes da nossa literatura. Um bom livro para ler aos mais pequenos e... porque não? Para recordar as histórias que nos marcaram a infância.

Autores: Jorge Lima e Cristina Falcão
Origem: Recebido para crítica

domingo, 13 de outubro de 2019

Nome de Código - Traição (Karen Cleveland)

Stephanie Maddox tem finalmente o trabalho que sempre desejou, enquanto agente do FBI responsável pela investigação interna. Mas o seu mundo está prestes a desabar. Foi enviado um email a partir de sua casa para uma organização suspeita e tudo aponta para que tenha sido o seu filho Zachary. Na mesma ocasião, Steph descobre uma arma escondida no guarda-fatos do filho. Mas, apesar de todas as provas em contrário e do seu instinto de investigadora, Stephanie recusa-se a acreditar que não conhece o filho tão bem como imagina. E, para o proteger, dedicar-se-á a investigar todas as alternativas... sem saber que acaba de se envolver ainda mais a fundo numa intriga de proporções colossais.
Embora essencialmente independente do anterior Tenho de Saber, com uma protagonista diferente e um enredo que começa por ser bastante mais pessoal, à medida que a história evolui há pequenas ligações que começam a vir à tona e, embora os elos comuns sejam suficientemente explicados, a história ganha outro impacto com o conhecimento prévio da história de Vivian. Talvez seja interessante, por isso, ler os dois livros por ordem, embora este seja, em si mesmo, um todo completo.
São também muitas as qualidades comuns ao livro anterior, embora este pareça elevá-las a um outro nível. O ritmo já era intenso, mas aqui torna-se quase irresistível. A complexidade das personagens e a forma como a linha entre verdade e mentira se vai tornando cada vez mais esbatida ganham aqui um impacto ainda maior devido às relações familiares envolvidas. E, quando as histórias se cruzam para desvendar conspirações mais vastas, então a intriga torna-se explosiva e torna-se impossível largar o livro antes do fim.
Há ainda outro ponto a fazer com que este livro sobressaia e esse diz respeito à abordagem tudo menos linear às forças secretas que se movimentam ao longo do enredo. Muita da intriga gira em torno de um possível acto de espionagem, mas cada nova revelação abre espaço a uma teia mais ampla. Ora, além de proporcionar muitas surpresas, esta expansão gradual tem ainda o condão de realçar as imperfeições e vulnerabilidades das personagens, o que faz com que o impacto seja também maior a nível emocional e com que o final - aberto quanto baste, mas sem deixar pontas soltas que não façam sentido - se revele particularmente adequado.
Intenso, intrincado e cheio de surpresas, trata-se, em suma, de um livro repleto de intriga e de segredos, mas também de vulnerabilidade e afecto - o tipo de afecto que nos coloca perante escolhas impossíveis. Surpreendentemente emotivo, mas também cheio de momentos tensos e de grandes revelações, um livro que prende do início ao fim, e que não posso deixar de recomendar.

Autora: Karen Cleveland
Origem: Recebido para crítica

sábado, 12 de outubro de 2019

Um dia tudo isto será meu (João Habitualmente)

Das ruas das cidades ao silêncio dos campos. Da sedução individual à uniformização de um pensamento colectivo. Do mais pessoal ao mais vasto dos pontos de vista. De tudo isto são feitos os poemas que compõem esta antologia e que, num registo que oscila da pura crueza a uma nostalgia quase evocativa, formam um todo surpreendentemente diverso e, simultaneamente, inesperadamente uno.
Um primeiro aspecto que importa referir acerca deste livro é o facto de se tratar de uma antologia construída a partir de uma obra mais vasta, seleccionada, aliás, por outro que não o autor. O primeiro ponto a destacar será, por isso, a organização, que, em vez de por datas, parece escolher temas específicos para ponto de partida de cada parte do livro. E a verdade é que, embora não o sendo, a impressão que fica é a de um conjunto que poderia perfeitamente corresponder a um livro construído de raiz, em que cada poema encaixa como uma luva na secção a que pertence e cada parte forma, por sua vez, um todo coeso que se lê quase como uma sucessão de imagens.
Há diversidade, porém, no seio desta unidade. Diversidade de temas, diversidade de ritmos e estruturas, diversidade até mesmo de tons, com alguns poemas breves a parecerem evocar todo um mundo e outros que, apesar de mais extensos, parecem ficar apenas pela estranheza. O resultado é uma maior sensação de proximidade relativamente a alguns poemas, enquanto outros não deixam uma marca tão impressionante, embora nunca se esbata a sensação de que pertencem ali.
E, claro, há o inevitável efeito secundário de quando se lê apenas parte de uma obra mais vasta: a curiosidade em conhecer o resto da obra deste autor. É sempre positivo quando um livro nos leva a querer ler outros livros - e esta antologia não é excepção.
Simultaneamente vasto e coeso no seu equilíbrio de proximidade e distância, trata-se, pois, de uma envolvente leitura para descobrir de forma sequencial, mas também de um livro a que regressar em busca daqueles poemas que mais marcaram. Para ler uma vez... e outra... e outra mais... ao ritmo da empatia e da recordação.

Autor: João Habitualmente
Origem: Recebido para crítica

sexta-feira, 11 de outubro de 2019

Jessica Jones, Vol. 2 - Os Segredos de Maria Hill (Brian Michael Bendis, Michael Gaydos e Matt Hollingsworth)

Jessica Jones está de regresso ao seu trabalho de investigação, mas aquilo que mais procura - o paradeiro do marido e da filha - continua a escapar-lhe. Embora tenha agido por bons motivos, as escolhas que fez são imperdoáveis, pelo menos aos olhos de Luke. E, como se não bastasse, Jessica acaba de receber a mais perigosa cliente que alguma vez lhe apareceu à porta. Maria Hill esconde segredos poderosos, resultantes do seu envolvimento na S.H.I.E.L.D. E há alguém que quer matá-la, mas não sabe quem. Decidiu, por isso, recorrer a Jessica, sem saber que as respostas serão tão surpreendentes quanto perigosas...
Parte do que torna estes livros tão fascinantes é a sua delicada fusão de dois mundos: de um lado as movimentações dos super-heróis (e gente com poderes em geral); do outro, a vida de uma detective privada, com o lado sombrio e até mesmo as dificuldades financeiras associadas à profissão. Mas há algo que tem vindo a sobressair a cada novo volume: cada desenvolvimento aproxima mais Jessica do seu passado e das suas relações com os super-heróis, sem no entanto deixar para trás a nova vida profissional que escolheu. O resultado é um registo surpreendentemente sombrio e um vincado contraste com a maior exuberância de outros super-heróis.
Este contraste reflecte-se naturalmente na arte, sendo, no caso deste volume, particularmente evidente na aparição de um dos perseguidores de Maria Hill, mas também na revelação do seu passado. Há, aliás, uma grande diferença no estilo desta parte da história, o que, mais uma vez, enfatiza os contrastes. Mas os tons sombrios da história de Jessica enquanto detective realçam também outro tipo de negrura: Jessica Jones pode ser tudo, mas não é uma personagem alegre e simpática. Há sombras à sua volta e não vêm apenas dos perigos com que tem de lidar. E a forma como essa sombra interior transparece para o aspecto visual enfatiza também a complexidade da personagem.
Embora consideravelmente mais negra do que o esperado, continua a ser, à sua maneira, uma história de super-heróis, o que significa que, apesar desta viragem parcial para o lado interior das personagens, continua a haver acção, pancadaria, explosões e tudo o mais que se espera deste tipo de histórias. E há também mistérios, não só relativos à linha essencial do enredo (que, como habitual, tem princípio e fim neste volume), mas também a ligações mais vastas que prometem grandes desenvolvimentos para o livro que se seguirá. Também daqui surge um equilíbrio: entre as muitas e impressionantes respostas e as perguntas que ficam em aberto, gerando uma enorme vontade de descobrir o que vem a seguir para Jessica Jones.
Sombrio, mas de altíssima intensidade, introspectivo quanto baste, mas repleto de acção e de surpresas, e com uma protagonista que marca um pouco mais a cada desenvolvimento, trata-se, pois, de um livro que, mais uma vez, corresponde e supera todas as expectativas. E que, naturalmente, se recomenda.

Autores: Brian Michael Bendis, Michael Gaydos e Matt Hollingsworth
Origem: Recebido para crítica

quinta-feira, 10 de outubro de 2019

O Resto É Paisagem

Já todos ouvimos uma qualquer variante da expressão que diz que Portugal é Lisboa. O resto é paisagem. Mas quem vive longe das grandes cidades conhece a verdadeira - e assustadora - riqueza de mitos e mistérios escondidos nas sombras de locais antigos. É esse, aliás, o ponto de partida para esta antologia e, como bem o explica Luís Filipe Silva na Introdução deste livro (e de forma surpreendentemente poética), o mal dorme onde menos se espera - e às vezes acorda. Basta, pois, esta breve introdução como promessa do muito de misterioso que se esconde no interior destas páginas. Que não desiludem, diga-se desde já.
Rogos e Mitos, de Inês Montenegro, parte da bem conhecida tragédia dos incêndios e do caos que provoca para contar a história de um enigmático mito da chuva e dos sacrifícios necessários para a atrair. Cativa, em primeiro lugar, pela precisão com que descreve o medo e a urgência ante a aproximação do fogo, bem como pela intensidade crescente que culmina num final intenso e poderoso. Cativante desde o início e verdadeiramente surpreendente, um conto que facilmente se torna memorável.
Já em O Prego no Portão, de João Ventura, o sobrenatural está na mente de quem nele acredita... ou será que não? Trata-se da história de um grupo de amigos que, numa viagem à aldeia, descobrem as histórias que por lá se contam, acabando por partir com um grande segredo... e algo que não se deve mencionar. Escrito num registo bastante simples, mas sempre cativante, surpreende, acima de tudo, pelo retrato preciso que traça para esse tão arraigado hábito rural de contar histórias estranhas. Além, é claro, da intrigante dúvida gerada pela existência ou não de um elemento sobrenatural na história do prego.
Segue-se O Poço, de Simão Cortês, história de uma criatura maligna que habita um poço e de como as influências dos espíritos são mais palpáveis aos que sempre conheceram o ambiente em que estes se movimentam. Intrigante, embora inicialmente um pouco previsível, tem no contraste entre as personagens citadinas e reais a sua grande força. Além disso, ao colocar a protagonista perante uma escolha difícil, o autor realça ainda um outro contraste: entre consciente e subconsciente, natural e sobrenatural.
O Espírito do Vento, de Lívia Borges, traça o percurso de uma misteriosa caixa através de diferentes gerações, com um segredo contido no seu interior e um mecanismo difícil de decifrar. Algo ambíguo em termos da natureza do enigma, cativa principalmente pela forma como conduz o mistério inicial num crescendo de intensidade que culmina numa revelação inesperada. Nem tudo obtém uma resposta clara, é verdade, mas o impacto essencial está lá.
Segue-se A Última Missa, de Raquel da Cal, história de um padre que, chegado à sua nova paróquia, descobre ter um vasto núcleo de fiéis cujas intenções são... do outro mundo. Intenso, com uma fluidez de escrita que confere vida a cada momento e uma aura de sombra e mistério que culmina num final bastante impressionante, facilmente justificaria uma história mais extensa, sem lhe faltar, porém, nada de essencial.
Chegou ao seu Destino, de Rui Ramos, narra a enigmática odisseia de um homem em busca do seu destino e da sua alma. Com um ambiente quase onírico, que parece misturar seres de múltiplas lendas, uma demanda quase épica e uma jornada de descoberta interior, surpreende pela facilidade com que, apesar da estranheza do cenário, prende o leitor ao percurso do protagonista.
Já Não se Pode Ter um Bixo, de Carlos Alberto Espergueiro, é, como o nome indica, uma história de estranha bicharada. Especificamente, bicharada caída do céu e capaz de dar origem a um produto... interessante. Intrigante acima de tudo pela estranheza dos ditos bichos, perde um pouco pela brevidade, já que fica uma enorme curiosidade insatisfeita em saber mais sobre essas estranhas criaturas. Interessante, ainda assim.
Segue-se A Solidão é um Deus Negro, de Ricardo Correia, história de uma mulher destroçada, espalhando devastação por tudo o que a rodeia. Melancólico, introspectivo, mas estranhamente certeiro no retrato que traça para as sombras da solidão, É um conto que, tal como a negrura que lhe serve de protagonista, se entranha aos poucos no pensamento, despertando emoções aparentemente vagas, mas surpreendentemente fáceis de identificar. Não é o conto mais intenso deste livro, mas é provavelmente o que mais facilmente se grava na memória.
Anátema, de Pedro Nuno Galvão, desfia um estranho e enigmático monólogo, história de um misterioso encontro num mundo onde as sombras do passado parecem estar vivas e cumprir uma função. Peculiar em todos os aspectos, do estilo narrativo à forma como as verdades secretas vão sendo reveladas, é um daqueles textos que, passada a estranheza inicial, começa a entranhar-se na memória, mesmo sem nunca dar todas as respostas.
Finalmente, A Maldição da Casa da Colina, de Daniela Maciel, narra a mudança de um casal para uma casa amaldiçoada e as consequências de ignorar os avisos e persistir em lá ficar. A fazer lembrar um pouco a história de The Shining, trata-se de um conto intenso, empolgante, cheio de momentos sinistros e com um enredo tão forte como as personagens que o povoam. Dificilmente se poderia escolher melhor história para fechar esta antologia em beleza.
Eis, pois, a impressão que fica deste livro: uma convergência de estilos, vozes e lendas diferentes, num conjunto em que todas as histórias têm em si algo de cativante e algumas delas facilmente se tornam memoráveis. Uma excelente leitura, em suma, para descobrir novos autores e novas visões de um mundo... menos habitado.

Título: O Resto É Paisagem
Autor: Luís Filipe Silva (organização)
Origem: Aquisição pessoal

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Estou Com Medo (Aurélie Chien Chow Chine)

O Gastão é um pequeno unicórnio com uma crina mágica de todas as cores do arco-íris. Mas a magia da sua crina é que muda de cor consoante as suas emoções. Durante o dia, o Gastão gosta de brincar e de passear pela natureza, mas, quando chega a noite e é hora de dormir, chega também o medo do escuro. Que pode ele fazer para ultrapassar o medo? Bem, só tem de encontrar a coragem dentro de si...
Uma das primeiras coisas que importa referir acerca destes pequenos livros é que, embora formando parte de uma colecção maior, são perfeitamente independentes, daí que a pequena apresentação do Gastão seja um elemento repetido. Ora, isto significa que é possível começar por qualquer dos livros e ir descobrindo as emoções volume a volume, ou então escolher uma emoção específica com que é preciso lidar.
É este, aliás, o cerne destes pequenos livros: a descoberta e a compreensão das emoções. Se às vezes nem os adultos conseguem lidar muito bem com aquilo que estão a sentir, mais importante ainda será que as crianças o compreendam. Este livro parte de um exemplo muito simples - e fácil de entender, pois muitos de nós tivemos esse medo em pequenos - e faz dele um ponto de partida para a compreensão de uma emoção. Emoção essa que é natural, pois o medo faz parte da vida, mas que importa compreender e ultrapassar.
E, claro, há a história em si e a forma como as ilustrações simples e fofas (continua a ser a melhor palavra para descrever o Gastão) fazem desta pequena viagem de descoberta uma aventura cativante. É uma visão, simples, claro, mas não deixa de ser eficaz, e a ideia da armadura de coragem associada ao exercício de respiração é também algo muito interessante de se praticar.
Descobrir as emoções, compreendê-las e aceitá-las: é esta a base desta história muito simples, mas muito cativante, sobre um pequeno unicórnio e a sua crina mágica. Um livro encantador para ler aos mais pequenos - e para recordar a quem o lê a importância de compreender o que sentimos.

Título: Estou Com Medo
Autora: Aurélie Chien Chow Chine
Origem: Recebido para crítica

terça-feira, 8 de outubro de 2019

Ms. Marvel, Vol. 3 - Apanhada (G. Willow Wilson, Elmo Bondoc e Takeshi Miyazawa)

Viver uma vida de super-heroína e, ao mesmo tempo, manter a imagem de boa filha numa família bastante conservadora não é tarefa fácil, mas Kamala começa a apanhar-lhe o jeito e as coisas parecem ter acalmado um pouco. Mas o perigo não passou. Há mais inumanos como Kamala e nem todos têm as melhores intenções. Embora não seja a única a ser diferente, a sua vida dupla faz com que se sinta sozinha. Não surpreende, por isso, que a entrada em cena de um rapaz que partilha dos seus gostos e da sua natureza lhe faça brotar borboletas no estômago...
Provavelmente o aspecto mais marcante das aventuras da Ms. Marvel é o facto de a construção da protagonista assentar num grande contraste: Ms. Marvel, super-heroína de fato fixe, poderes impressionantes e coração no sítio certo, decidida a combater os maus e a proteger todos os inocentes que puder; Kamala Khan, jovem filha de paquistaneses, fortemente enraizada em tradições conservadoras que lhe impõem um plano de vida bastante estrito. Kamala é ambas e o contraste entre ambas só reforça a sua posição de jovem em busca do seu lugar no mundo, o que gera uma empatia bastante forte.
Sentimentos e dilemas pessoais à parte, é também uma história de super-heróis, o que significa as expectáveis cenas de acção e... bem, pancadaria. No que toca a este aspecto, sobressaem duas características. Primeiro, o facto de estas cenas, repletas de vida e movimento, virem acompanhadas de questões interessantes, personagens conhecidas de outras andanças (como é o caso de um certo vking) e uns quantos momentos deliciosamente divertidas; e segundo, a forma como cada desenvolvimento atinge a sua máxima força no equilíbrio entre os diálogos certeiros (e muito engraçados) e uma arte cheia de cor e movimento (como seria de esperar numa história de super-heróis), mas também de expressividade (com especial destaque para o rosto de Kamala).
Sendo uma história pertencente a um universo maior (além de a uma série, como é óbvio), é apenas natural que fiquem perguntas sem resposta. Há certos desenvolvimentos, por exemplo, no que toca à rainha Medusa, que deixam uma ligeira sensação de curiosidade insatisfeita, pois muito fica em aberto. Ainda assim, tendo em conta o enquadramento, faz todo o sentido que assim seja, e a sensação que fica é, acima de tudo, de uma grande vontade de ler os volumes seguintes o mais rápido possível para saber que novas aventuras esperam pela Kamala.
Cheio de acção e de humor, com uma protagonista cheia de qualidades, mas também com as necessárias vulnerabilidades que a humanizam, e um vastíssimo potencial em termos de mundo e de vilões, trata-se, pois, de mais um volume que não desilude. Vale muito a pena conhecer as aventuras da Ms. Marvel - enquanto super-heroína e não só.

Autores: G. Willow Wilson, Elmo Bondoc e Takeshi Miyazawa
Origem: Recebido para crítica

segunda-feira, 7 de outubro de 2019

O Jurado N.º 3 (James Patterson e Nancy Allen)

A jovem advogada Ruby Bozarth acaba de abrir o seu escritório em Rosedale e, com algumas dificuldades de percurso, espera conquistar o seu lugar e os clientes de que tanto precisa. Mas está longe de imaginar as reviravoltas que a aguardam. Ao ver-se a braços com a defesa de um jovem negro, acusado do homicídio de uma mulher branca e rica, Ruby depara-se com o que julga ser o mais difícil dos casos. Mas, mais uma vez, grandes surpresas a aguardam. Acreditar na inocência do seu cliente não chega, muito menos num lugar tão cheio de preconceitos. E, mesmo que consiga provar a inocência de Darrien, isso não significa que os problemas tenham terminado.
Ao iniciar a leitura de um livro de James Patterson, há certas características essenciais que são, à partida, expectáveis: são elas a escrita directa, sem elaborações desnecessárias, e o ritmo de acção constante, pautado por múltiplas descobertas, perigos e reviravoltas. Este livro não é excepção, abrindo com um cenário de crime e conduzindo depois a narrativa através de dois casos difíceis e cujos verdadeiros responsáveis se encontram onde menos se espera.
Outra qualidade está na força dos protagonistas, e também aqui não há excepções. Ruby Bozarth é uma personagem simultaneamente determinada e vulnerável, decidida a prosperar, mas com um conjunto de falhas que a tornam humana. Junte-se isto à situação delicada de Darrien e o resultado é uma empatia quase imediata, potenciada também por certos preconceitos sociais retratados de forma bastante certeira ao longo do livro. Essa empatia vai, aliás, crescendo e expandindo-se a outras personagens, com especial destaque para a "fada-madrinha" de Ruby, a poderosa Suzanne Green, personagem por vezes secundária, mas protagonista de alguns momentos notáveis.
Claro que o facto de haver tanta coisa a acontecer, e dois casos conjugados num mesmo percurso, faz com que certas resoluções pareçam um pouco apressadas. Fica uma certa curiosidade insatisfeita no que diz respeito ao misterioso jurado número três e a sensação de que alguns elementos podiam ter sido mais desenvolvidos. Ainda assim, a verdade é que o essencial está lá, numa história em que nenhuma pergunta crucial fica sem resposta e em que, tendo em conta o percurso da protagonista, o final se revela particularmente satisfatório.
Tudo se resume, portanto, a mais uma das leituras intensas, cativantes e cheias de surpresas a que James Patterson já nos habituou. Intrigante, intenso e com uma visão surpreendentemente certeira em termos de preconceitos sociais, um livro que prende do início ao fim. 

Título: O Jurado N.º 3
Autores: James Patterson e Nancy Allen
Origem: Recebido para crítica

domingo, 6 de outubro de 2019

A Raposa (Frederick Forsyth)

Na sequência de um surpreendente ataque informático aos sistemas da NSA, as autoridades britânicas deparam-se com a mais inesperada das situações: o ataque não partiu de nenhuma organização terrorista ou inimigo estrangeiro, mas sim de um inofensivo e vulnerável rapaz com uma inteligência fora de série. O que parecia uma ameaça torna-se subitamente uma poderosa arma nas mãos dos britânicos e cabe a Sir Adrian Weston orientar as capacidades do jovem hacker. Mas aquilo que torna Luke Jennings tão útil é o mesmo que faz dele um alvo a abater. E cabe, mais uma vez, a Sir Adrian encontrar uma forma de proteger o seu activo.
Sendo este um livro em que a espionagem, principalmente através de meios informáticos, desempenha um papel tão crucial, não é propriamente uma surpresa a intrincada  teia de influências, planos e investidas na sombra que definem o ritmo deste livro. É este, aliás, o grande ponto forte, pois há sempre um plano em curso, que pode ou não resultar e que, independentemente do resultado, implicará uma retaliação. A vontade de saber o que acontece a seguir é, por isso, uma constante, o que, associado à visão estratégica atribuída a Sir Adrian e amplamente desenvolvida, torna a leitura muito intrigante.
Já no que toca às personagens propriamente ditas, surge uma impressão de ambiguidade. Tanto Sir Adrian como o seu arqui-inimigo têm um longo e intrigante percurso e a construção da história como equiparação entre o xadrez global e o quase inconsciente combate pessoal entre ambos confere ao conflito uma perspectiva mais pessoal. Luke, por outro lado, é o cerne de todo o enredo, mas a sua presença surge como que de uma figura secundária, quase um objecto nas mãos das forças em conflito. Faz sentido que assim seja, pois todas as partes envolvidas o vêem como uma arma a utilizar ou combater. Surpreende, ainda assim, a distância com que é descrito o percurso de um jovem inocente e vulnerável.
No fundo, tudo parece estar repleto de ambiguidades, desde a situação de Luke (e a forma como é abordada) à construção das intrigas e planos das diferentes forças em jogo. E, embora a sensação que fica seja, por vezes, de um certo afastamento, causado pela distância com que muitos aspectos são descritos, a verdade é que faz sentido que assim seja, pois é o reflexo de uma guerra secreta onde as individualidades ficam, por vezes, para um muito distante segundo plano.
Intrincado na intriga e cativante no rumo que traça para a história desta guerra nas sombras, pode não ser um livro de emoções fortes, mas não deixa, ainda assim, de ser uma leitura muito interessante. História de espiões em tempos modernos, um livro que vale a pena conhecer.

Título: A Raposa
Autor: Frederick Forsyth
Origem: Recebido para crítica

sexta-feira, 4 de outubro de 2019

Os Vencidos da História (José Jorge Letria)

Há quem diga que a história é escrita pelos vencedores e que aos vencidos cabe apenas o esquecimento, mas nem sempre assim. É também verdade que há vencedores que se tornam vencidos e que, embora alguns vencidos tenham alcançado grandes feitos, nem todos os vencidos são mártires, heróis ou sequer admiráveis. Este não é um livro sobre heróis que o destino derrubou (embora inclua alguns). É de vencidos que fala, sem traçar uma linha precisa entre bem e mal. Até porque também há quem diga que todos os vilões são heróis na sua perspectiva da história...
Algo que é recorrente neste tipo de livros é que, dedicando apenas umas poucas páginas a cada protagonista, a versão que apresenta da sua história é inevitavelmente sucinta. Ora, o resultado é também inevitável: fica uma certa curiosidade insatisfeita, uma vontade de aprofundar conhecimento, até porque muitas destas figuras justificariam - e justificaram - um livro inteiro a seu respeito. Mas a verdade é que o objectivo não é contar uma história detalhada, mas antes traçar uma visão concisa dos percursos destas figuras que a história acabou por tornar vencidos.
Claro que há uma contrapartida: a relativa brevidade de cada texto abre espaço a que este livro possa incluir um grande número de personalidades históricas. E é daqui que surge outra faceta que importa destacar: a diversidade. Todas as figuras abordadas neste livro foram, de alguma forma, vencidos da história, e é esse o único ponto comum a todos. De resto, há espaço para todo o tipo de personalidades e posicionamentos. Aliás, importa reforçar a ideia de que vencido não equivale a herói, daqui que este livro tenha espaço tanto para vítimas da teoria como para tiranos, para vítimas da repressão como para ditadores, para heróis de dimensão mítica bem como para verdadeiros terroristas. No fim, foram vencidos. É esse o ponto comum. O resto é a história pura e dura, sem simpatias nem justificações.
Importa ainda mencionar o aspecto visual, que, embora secundário ao conteúdo, faz deste livro algo de memorável. As fotografias dos protagonistas, associadas às imagens de alguns momentos cruciais e às citações espalhadas pelo livro (com o vermelho a apontar um ponto assinalável), fazem com que baste um primeiro folhear para despertar a atenção para esta leitura, contribuindo para o gerar de uma curiosidade inicial que só cessa depois de terminada a leitura.
Conciso, mas repleto de informação interessante, trata-se, pois, de um livro que, não sendo um registo completo das vidas destes vencidos, traça, sem os separar em bons e maus, um retrato bastante preciso destas figuras. Os caminhos da história são voláteis... e este é um bom livro para o recordar.

Autor: José Jorge Letria
Origem: Recebido para crítica

quinta-feira, 3 de outubro de 2019

O Pequeno Cavaleiro que Tinha Medo da Chuva (Gilles Tibo e Geneviève Després)

Era uma vez um pequeno cavaleiro que não tinha medo de nada... ou quase! Só uma coisa o assustava, devido à possibilidade de lhe enferrujar a armadura: a chuva. Por isso, de cada vez que começava a chover, corria para a sua fortaleza. Até que chegou o dia em que uma grande tempestade pôs em perigo a aldeia que lhe cabia proteger. Então, o pequeno cavaleiro viu-se obrigado a pensar numa solução... e a enfrentar o seu medo de uma vez por todas!
Provavelmente o aspecto mais cativante nesta pequena história é o facto de se tratar de uma história de cavaleiros... diferente. Sim, temos como protagonista um corajoso cavaleiro, com a sua armadura e o seu cavalo... mas também com um megafone, um gato de estimação e uma paixão assolapada por bolo de chocolate. Há elementos modernos espalhados por este livro (como, por exemplo, a ventoinha que o gato usa para se secar), o que, associado à peculiaridade da aldeia onde tudo acontece, fazem desta pequena história uma curiosa aventura, cheia de pormenores surpreendentes para descobrir.
Há também uma mensagem positiva a emergir desta aventura. O pequeno cavaleiro tem medo da chuva, mas tem também a capacidade de apelar à sua coragem e fazer frente a esse medo quando se torna realmente necessário. Ora, tratando-se de um livro infantil, esta visão de superação dos medos não podia ser mais importante. Afinal, todos nos lembramos de quando tínhamos medo, por exemplo, do escuro. Reconhecer o medo e enfrentá-lo faz parte do crescimento, e essa afirmação é também algo que sobressai deste livro.
Mas, voltando à história propriamente dita. Não é propriamente uma surpresa que seja relativamente simples, já que é um livro pensado para os mais novos. Já os muitos pormenores surpreendentes, bem como o equilíbrio certeiro entre o texto principal, as pequenas observações e a ilustração, criam a agradável impressão de um livro que é mais do que a história que contém, mas também as muitas pequenas coisas que lhe conferem beleza e envolvência.
E é isto que fica, uma vez somadas as partes: uma história simples, mas cheia de pormenores encantadores, com uma mensagem positiva e uma sucessão de pequenas surpresas a conceder-lhe mais vida. Bonito e cativante, um bom livro para ler com os mais novos.

Autores: Gilles Tibo e Geneviève Després
Origem: Recebido para crítica