Já todos ouvimos uma qualquer variante da expressão que diz que Portugal é Lisboa. O resto é paisagem. Mas quem vive longe das grandes cidades conhece a verdadeira - e assustadora - riqueza de mitos e mistérios escondidos nas sombras de locais antigos. É esse, aliás, o ponto de partida para esta antologia e, como bem o explica Luís Filipe Silva na Introdução deste livro (e de forma surpreendentemente poética), o mal dorme onde menos se espera - e às vezes acorda. Basta, pois, esta breve introdução como promessa do muito de misterioso que se esconde no interior destas páginas. Que não desiludem, diga-se desde já.
Rogos e Mitos, de Inês Montenegro, parte da bem conhecida tragédia dos incêndios e do caos que provoca para contar a história de um enigmático mito da chuva e dos sacrifícios necessários para a atrair. Cativa, em primeiro lugar, pela precisão com que descreve o medo e a urgência ante a aproximação do fogo, bem como pela intensidade crescente que culmina num final intenso e poderoso. Cativante desde o início e verdadeiramente surpreendente, um conto que facilmente se torna memorável.
Já em O Prego no Portão, de João Ventura, o sobrenatural está na mente de quem nele acredita... ou será que não? Trata-se da história de um grupo de amigos que, numa viagem à aldeia, descobrem as histórias que por lá se contam, acabando por partir com um grande segredo... e algo que não se deve mencionar. Escrito num registo bastante simples, mas sempre cativante, surpreende, acima de tudo, pelo retrato preciso que traça para esse tão arraigado hábito rural de contar histórias estranhas. Além, é claro, da intrigante dúvida gerada pela existência ou não de um elemento sobrenatural na história do prego.
Segue-se O Poço, de Simão Cortês, história de uma criatura maligna que habita um poço e de como as influências dos espíritos são mais palpáveis aos que sempre conheceram o ambiente em que estes se movimentam. Intrigante, embora inicialmente um pouco previsível, tem no contraste entre as personagens citadinas e reais a sua grande força. Além disso, ao colocar a protagonista perante uma escolha difícil, o autor realça ainda um outro contraste: entre consciente e subconsciente, natural e sobrenatural.
O Espírito do Vento, de Lívia Borges, traça o percurso de uma misteriosa caixa através de diferentes gerações, com um segredo contido no seu interior e um mecanismo difícil de decifrar. Algo ambíguo em termos da natureza do enigma, cativa principalmente pela forma como conduz o mistério inicial num crescendo de intensidade que culmina numa revelação inesperada. Nem tudo obtém uma resposta clara, é verdade, mas o impacto essencial está lá.
Segue-se A Última Missa, de Raquel da Cal, história de um padre que, chegado à sua nova paróquia, descobre ter um vasto núcleo de fiéis cujas intenções são... do outro mundo. Intenso, com uma fluidez de escrita que confere vida a cada momento e uma aura de sombra e mistério que culmina num final bastante impressionante, facilmente justificaria uma história mais extensa, sem lhe faltar, porém, nada de essencial.
Chegou ao seu Destino, de Rui Ramos, narra a enigmática odisseia de um homem em busca do seu destino e da sua alma. Com um ambiente quase onírico, que parece misturar seres de múltiplas lendas, uma demanda quase épica e uma jornada de descoberta interior, surpreende pela facilidade com que, apesar da estranheza do cenário, prende o leitor ao percurso do protagonista.
Já Não se Pode Ter um Bixo, de Carlos Alberto Espergueiro, é, como o nome indica, uma história de estranha bicharada. Especificamente, bicharada caída do céu e capaz de dar origem a um produto... interessante. Intrigante acima de tudo pela estranheza dos ditos bichos, perde um pouco pela brevidade, já que fica uma enorme curiosidade insatisfeita em saber mais sobre essas estranhas criaturas. Interessante, ainda assim.
Segue-se A Solidão é um Deus Negro, de Ricardo Correia, história de uma mulher destroçada, espalhando devastação por tudo o que a rodeia. Melancólico, introspectivo, mas estranhamente certeiro no retrato que traça para as sombras da solidão, É um conto que, tal como a negrura que lhe serve de protagonista, se entranha aos poucos no pensamento, despertando emoções aparentemente vagas, mas surpreendentemente fáceis de identificar. Não é o conto mais intenso deste livro, mas é provavelmente o que mais facilmente se grava na memória.
Anátema, de Pedro Nuno Galvão, desfia um estranho e enigmático monólogo, história de um misterioso encontro num mundo onde as sombras do passado parecem estar vivas e cumprir uma função. Peculiar em todos os aspectos, do estilo narrativo à forma como as verdades secretas vão sendo reveladas, é um daqueles textos que, passada a estranheza inicial, começa a entranhar-se na memória, mesmo sem nunca dar todas as respostas.
Finalmente, A Maldição da Casa da Colina, de Daniela Maciel, narra a mudança de um casal para uma casa amaldiçoada e as consequências de ignorar os avisos e persistir em lá ficar. A fazer lembrar um pouco a história de The Shining, trata-se de um conto intenso, empolgante, cheio de momentos sinistros e com um enredo tão forte como as personagens que o povoam. Dificilmente se poderia escolher melhor história para fechar esta antologia em beleza.
Eis, pois, a impressão que fica deste livro: uma convergência de estilos, vozes e lendas diferentes, num conjunto em que todas as histórias têm em si algo de cativante e algumas delas facilmente se tornam memoráveis. Uma excelente leitura, em suma, para descobrir novos autores e novas visões de um mundo... menos habitado.
Título: O Resto É Paisagem
Autor: Luís Filipe Silva (organização)
Origem: Aquisição pessoal