sexta-feira, 18 de junho de 2021

Bairro Sem Saída (Fernando Ribeiro)

Rogério Paulo nasceu no bairro durante um tremor de terra, assombrado já pela morte do primo dois dias antes de nascer. E, sem saber bem como ou porquê, viu-se plantado numa vida da qual parece ser impossível sair - ainda que haja quem os queira expulsar de lá. Cresce entre sombras e sonhos, inocência que se vai tornando implacabilidade, na companhia do amigo diabético que vai desaparecendo, do medo do monstro que frequenta a sua escola, da iminência da tomada de parte do Bairro - do seu Bairro, do único lugar que conhece - por um grupo de novos e ricos habitantes cujas intenções são, no mínimo, duvidosas. E vai-se encontrando na promessa de uma luta inevitável, entre ricos e pobres, sim, e os que estão dispostos a vender-se para conseguir o que querem.
Construído à base de sombras e de inocência, das dores - e desejos - de crescimento entrelaçadas no crescimento da própria paisagem, este não é, desde logo, um livro fácil de descrever. Até porque a voz do protagonista tem, ao longo de todo o percurso, algo de onírico e de surreal que faz com que as fronteiras da realidade se esbatam. Ainda assim, há algo de estranhamente fascinante nesta história ora introspetiva, ora brutal, onde o cruelmente real e o aparentemente impossível se fundem num equilíbrio notável.
Não é propriamente uma leitura rápida, até porque tem um ritmo muito próprio. A história de Rogério Paulo confunde-se, às vezes, com a história do Bairro, o que significa que há uma visão introspetiva - a do crescimento do protagonista - que se entrelaça com a do crescimento do cenário. Mas este início mais pausado, feito das teias do real e do improvável vai crescendo em intensidade à medida que os desenvolvimentos se sucedem. A estranheza inicial dá lugar à curiosidade e depois a uma certa empatia ambígua - como o são as personagens que a despertam - que faz com o final seja particularmente poderoso em termos emocionais. O Bairro e os seus habitantes podem não ser propriamente gente perfeita. (E quem o é, afinal?) Mas, tendo em conta os desenvolvimentos, acabam por surgir rasgos de heroísmo que acabam por ser também inesperadamente marcantes.
E importa, por último, olhar para outra voz. Sendo certo que é a voz do protagonista a contar toda esta história, há na cadência das palavras o eco de uma voz própria que, nos ritmos e na capacidade de suscitar choque, vai para lá do protagonista e parece transcendê-lo. Será a voz do autor a falar através de Rogério Paulo... ou talvez a voz do próprio Bairro. O que é certo é que há uma singularidade na cadência do texto que capta sempre a atenção, mesmo nos momentos em que a distância parece ser um pouco maior.
Pausado mas cativante, surreal, a espaços, mas com uma dose brutal de realidade, introspetivo, mas com uma visão de comunidade que transcende a história pessoal: assim é este Bairro Sem Saída, um livro que exige o seu tempo, mas que vale cada minuto.

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