É noite eleitoral e, inexplicavelmente, o vencedor das eleições parece ter acabado de se suicidar. Entretanto, no centro de Lisboa, um bombista suicida faz explodir um autocarro e a bandeira do Estado Islâmico é içada num monumento nacional. E eis que, na iminência de um grande evento internacional, o país se vê mergulhado nas sombras do terror. De início, não parece haver grande relação entre os dois casos. Afinal, o candidato suicidou-se. Quanto ao bombista, o caso é bastante mais complexo e as suspeitas recaem sobre o seu antigo professor, Afonso Catalão. Só que nem as duas situações são casos isolados nem Afonso é apenas o que parece ser. Não é inocente, mas também não é um suspeito óbvio. E, para provar a sua inocência e, de certa forma, redimir o que fez em tempos, Afonso terá de regressar ao passado que rejeitou - e descobrir as complexas verdades que se escondem sob os acontecimentos dessa noite.
Uma das qualidades mais intrigantes deste livro, e diga-se desde já que não lhe faltam qualidades, é a forma como o autor consegue tecer um enredo intrigante e cheio de momentos de acção, sem nunca perder de vista o contexto mais vasto e os elementos pessoais que tornam o todo muito mais do que a simples soma das partes. E fá-lo sem sacrificar em nada a intensidade do enredo, pois as descrições e os elementos de contextualização enquadram-se com toda a naturalidade no ritmo a que a narrativa evolui.
Também particularmente impressionante é o desenvolvimento das personagens e o tipo de ligação que estas estabelecem com o leitor. Afonso, com o seu passado misterioso e a evidente necessidade de redenção, desperta de imediato a curiosidade e cada nova revelação só torna o seu percurso mais interessante. Mas, curiosamente, muitos dos momentos mais marcantes vêm de personagens mais secundárias - Sarita, Yusef, até mesmo Ibrahim - e a marca que deixam acaba por ser ainda mais forte pelo facto de não terem realmente grande influência no mundo em que se movem. Afinal, o terror faz-se do sacrifício de inocentes. São sempre os inocentes que sofrem.
E isto leva-me à que é, provavelmente, a maior qualidade de todas. Acontece, por vezes, neste género de livros, que o perigo e acção acabam por conduzir a um final demasiado limpo. Não é esse o caso aqui. Aqui, todos os acontecimentos têm consequências. Talvez se escape ao perigo, mas nunca se escapará inteiramente incólume. E, em vez de um fim limpo, feliz e sem pontas soltas, o que o autor apresenta aqui é algo de bastante mais complexo, mas também bastante mais realista na forma como aborda as muitas questões pertinentes evocadas ao longo do enredo.
Mas voltando ainda às personagens. É certo que há um pouco de tudo, desde os que despertam empatia imediata aos que comovem pela inocência, passando também pelos que não podem inspirar senão repulsa. Mas o mais interessante está nas relações e na forma como personagens que, de início, parece sumamente irritante na forma como lidam umas com as outras, acabam por surpreender ao revelar as suas melhores qualidades. Também daqui há algo a retirar: nada é perfeito. Ninguém é perfeito. E há profundidades insuspeitas no carácter de um ser humano.
Retrato actual de um mundo em que o medo parece ser uma presença cada vez mais constante, eis, pois, uma leitura viciante, mas também repleta de temas pertinentes e com um núcleo de personagens tão marcantes quanto as situações que protagonizam. Intenso, intrigante e cheio de surpresas, um livro memorável. E muito, muito, muito bom.
Título: A Célula Adormecida
Autor: Nuno Nepomuceno
Origem: Recebido para crítica
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