Responsável pela folha cultural de um jornal "independente" - tão independente quanto se pode ser em tempos de ditadura - o doutor Pereira, perdido no seu próprio mundo e fascinado por um artigo que leu, contrata, para escrever necrologias antecipadas, o jovem Monteiro Rossi. Só que Rossi não é apenas um jornalista à procura de emprego. Tem amigos duvidosos, ideias revolucionárias - e isso é tudo menos aconselhável na Lisboa de Salazar. Pereira só quer saber da literatura, diz, e a política não lhe diz nada. Mas vê-se fascinado pelo idealismo do jovem - e é assim que começa a questionar...
Há algo de particularmente mágico em regressar a uma história marcante e encontrá-la num outro formato, mas com a mesma alma essencial. E é esta precisamente uma das características mais impressionantes deste livro: é uma adaptação fiel e, pese embora as necessárias diferenças, é possível reconhecer as linhas do original, vendo-as porém a uma nova perspectiva. É que o elemento visual dá-lhe uma identidade nova e uma outra vida a personagens e acontecimentos. E esta mistura entre novo e familiar é algo verdadeiramente brilhante.
Independentemente deste impacto, inevitável para quem já conhecer o romance, é também um livro completo em si mesmo - ou seja, para quem ainda não conhece o doutor Pereira, descobrir a história através desta adaptação não retira nenhum do seu impacto. Talvez tenha o efeito secundário de criar a vontade de ler o romance - tal como o romance aumenta a vontade de ler esta adaptação. Mas são elementos independentes, ainda que se complementem na perfeição.
Mas voltando à história - e pondo de parte a existência ou não de conhecimento prévio. Há na história do doutor Pereira e na sua descoberta de um mundo bastante mais cruel e complexo do que o seu mundo interior um retrato bastante preciso do que é a vida e a liberdade (ou falta de) num regime ditatorial. A censura, a violência, o inevitável secretismo marcam aqui uma presença vincada - e um contraponto à também presente (e inevitável) resistência. A história do doutor Pereira - e principalmente a forma como tudo termina - é todo um hino à resistência, nem sempre grandiosa, nem sempre bem-sucedida... mas necessária, sempre. E, se a história em si basta para o exprimir, a imagem - com tons que parecem também evocar o secretismo - torna tudo mais nítido e mais palpável.
Adaptação fiel, mas completa na sua solidez, eis, pois, um livro imperdível, tanto para quem já leu o romance de Antonio Tabucchi, como para os que não o descobriram ainda. Marcante, pertinente e, além disso, belíssimo, um livro que não posso deixar de recomendar.
Título: Afirma Pereira
Autor: Pierre-Henry Gomont
Origem: Recebido para crítica
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