sábado, 4 de julho de 2020

Na Farmácia do Evaristo (Fernando Pessoa)

Na sequência de uma tentativa falhada de golpe de estado, vários homens reúnem-se numa farmácia para discutir os acontecimentos e, tendo-os como ponto de partida, filosofar sobre política. Vêm de contextos e ideologias contrárias, pelo que a provocação inicial cedo se transforma numa elaborada discussão sobre questões como o que confere ou não validade a uma revolução, a credibilidade ou falta dela das eleições e até o valor de um juramento de fidelidade. Os ânimos vão-se, talvez, exaltando, mas os argumentos não se esgotam... e a discussão continua.
A primeira coisa que importa referir sobre este livro é que se trata de um conto inacabado, o que significa, naturalmente, que tudo é deixado em aberto no que respeita ao futuro e consequências da discussão. Ainda assim, é uma história interessante de se ler, não só pela sempre impressionante fluidez e complexidade da escrita de Pessoa, mas sobretudo porque é todo um exercício de debate e discussão de ideias diferentes - incluindo provocações, figuras de estilo, manobras mais ou menos filosóficas e até o intemporal papel de "advogado do diabo". Claro que, sendo sobretudo discussão, é um texto de ritmo relativamente pausado, até porque a complexidade da argumentação assim o exige.
Outro aspecto interessante é que este aceso debate tem o condão de pôr em dúvida todas as certezas. Sendo os seus intervenientes defensores de posturas muito distintas, é apenas natural que haja conflito e ambiguidade e o desenrolar da conversa faz com que as várias certezas das personagens vão sendo meticulosamente dissecadas. Mas há também uma outra ambiguidade associada, pois cada leitor terá os seus valores e dará, talvez, por si a tomar partido. Neste aspecto, importa também fazer uma menção à entrevista a Álvaro de Campos que surge no final do livro e que leva a todo um outro nível esta visão de ambiguidade moral. É que, sendo embora um "homem" fruto do seu tempo, Álvaro de Campos tem algumas perspectivas questionáveis, nomeadamente quando se refere à escravatura... com e sem aspas. Isto leva inevitavelmente à comparação e à reflexão sobre quanto do que é dito poderia ser aceitável nos dias de hoje - e quanto não será, talvez, também uma provocação.
É um livro muito breve, daí que surpreenda tanto a complexidade das discussões políticas e filosóficas. E é um livro ambíguo, que deixará, decerto, impressões diferentes consoante o posicionamento de cada leitor. Mas é, sobretudo, um conto bem escrito, com uma visão elaborada e alguns pontos de vista que importa dissecar. E tudo isto gera uma leitura que consegue ser, por vezes, bastante desconfortável, mas que tem também muito de interessante.

Autor: Fernando Pessoa
Origem: Recebido para crítica

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