sexta-feira, 4 de março de 2022

A Fera (Zidrou e Frank Pé)

A chegada à Bélgica de uma criatura misteriosa, diferente de quaisquer outros animais conhecidos, passa maioritariamente despercebida aos olhos do mundo devido às circunstâncias dramáticas do seu... desembarque. Ainda assim, um encontro inesperado com uma criança com um coração demasiado grande e uma vida demasiado difícil, proteja-o para a fama. É um animal singular, cuja característica mais vincada parece ser a sua enorme cauda. Mas, para François, é mais do que isso. É um companheiro, um amigo, um foco de luz numa vida demasiado ensombrada pelo passado. E, ainda assim, é de um animal selvagem que se trata. E a felicidade não pode durar...
Há algo de absurdamente fascinante na forma como este livro conjuga elementos tão diferentes e aparentemente incompatíveis num equilíbrio que quase roça a perfeição. Por um lado, o início quase parece evocar uma história de terror, com a chegada de um barco carregado de morte e uma fuga igualmente dramática. Por outro, a situação de François e da mãe é puro drama, com as consequências da história a assumirem um papel fulcral e a servirem de base a momentos de pura crueldade. E há, claro, a ternura transbordante da inocência de François, a sua devoção comovente às criaturas mais frágeis e a angustiante impotência de quando até os pequenos rasgos de luz se desfazem. Há todo um espetro emocional nesta história, que vai muito além da descoberta de uma criatura estranha. E é este vasto equilíbrio que torna tudo tão marcante.
Outro ponto particularmente notável é a forma como este equilíbrio de emoções é transposto para a própria arte, não só no equilíbrio entre imagem e diálogo - e diga-se que a expressão de François chega mesmo a dizer muito mais do que as suas palavras - mas também na forma como a cor parece refletir essa mesma emoção. A parte inicial, sombria, ominosa, evoca na perfeição o mistério e o horror. A luz pálida dos momentos mais claros insinua as sombras subjacentes ao quotidiano. E há até pequenos rasgos de humor em que a expressão das personagens parece aumentar a intensidade dos momentos mais caricatos.
Importa ainda salientar um último ponto: que quem cresceu com os desenhos animados do Marsupilami encontrará aqui uma figura bem diferente. Ainda assim, há como que uma sensação de proximidade, pois se esta criatura é bem mais selvagem - e realista - não deixa, ainda assim, de haver uma dose impressionante de inocência. Mais vulnerável - e também por isso mais real - e protagonizada por uma figura diferente. Mas inocência, ainda assim, capaz de nos lembrar a que conhecemos outrora e de abrir portas a um regresso ao passado - ainda que por caminhos diferentes.
Emocionalmente devastador com a sua fusão particularmente intensa de ternura e de crueldade, trata-se, em suma, de um livro que desperta memórias para depois as conduzir por caminhos nunca antes explorados. E que nos conduz ao coração das personagens, surpreendendo e abalando a cada passo do caminho.

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