domingo, 6 de março de 2022

Sangue Novo (Pedro Lucas Martins [ed.])

Histórias de sombra e de assombração. De medo, mistério e sobrenatural. De enigmas e impossíveis. E de sangue, claro, sangue novo em múltiplos sentidos. Eis a base de uma antologia em que basta a capa para chamar a atenção. Mas não fica por aí. De todo.
Antes de passarmos ao... sangue, digamos assim, no cerne desta antologia, importa referir dois rápidos aspetos: a introdução, que explica um pouco a ideia das sua origens; e a organização, que, além de tornar o livro visualmente mais apelativo, apresenta um pouco as mentes por trás das histórias, o que é sempre interessante.
Avançando então para a alma do livro, o primeiro conto é Pestinhas, de Cláudio André Redondo, história dos efeitos dramáticos da privação de sono sobre a racionalidade de um pai de gémeos. Muito breve, mas carregadinho de tensão, destaca-se sobretudo pelo contraste entre visões do sobrenatural e demónios bem reais.
Segue-se Tarde de Verão, de Ricardo Alfaia. Ainda mais breve, esta história de uma mosca a bater contra o vidro destaca-se pela capacidade de surpreender em tão poucos parágrafos. Pouco é desvendado sobre o como e o porquê, mas a reviravolta não deixa, ainda assim, de ser forte.
Praga, de Sandra Henriques, fala de uma possível invasão de estranhas criaturas, de natureza indefinida, mas de evidente brutalidade. Embora deixando algumas perguntas sem resposta, o que contribui também para adensar o mistério, trata-se de uma história cativante, cheia de tensão e bastante eficaz na construção da sensação ominosa que envolve todo o percurso.
O Manicómio das Mães, de Liliana Duarte Pereira, conta a história de um hospital psiquiátrico para mães obcecadas pelos filhos. Singular e intrigante, parte de uma certa estranheza para traçar depois um crescendo de intensidade que culmina num final poderoso e revelador.
Conta Comigo, de Martina Mendes, fala de um aniversário e do pior tipo de monstros - os que vivem na realidade. Intenso, marca um ritmo forte na forma direta que tem de contar a história, evocando ao mesmo tempo uma sensação de horror visceral e uma reflexão sobre o que esconde nas sombras de vidas aparentemente normais. 
Segue-se Labirinto, de Paulo A. M. Oliveira, história de um hotel abandonado e dos perigos que se escondem nos seus labirínticos corredores. Com uma aura de horror clássico e um crescendo de intensidade que culmina num final surpreendente, ainda que ligeiramente ambíguo, trata-se de uma história tão misteriosa quanto cativante.
Godigana, de Maria Varanda, fala de um aparente caso de polícia que esconde verdades mais sombrias e de difícil explicação. Verdadeiramente arrepiante, não só pela história propriamente dita, mas sobretudo pela tensão que emana da escrita, tem nas diferentes perspetivas e no contraste entre as sombras de cada uma delas uma força poderosa. 
O Devorador de Sonhos, de Marta Nazaré, conta a história da origem dos pesadelos, num conto inesperadamente leve e carregadinho de magia, com um toque de inocência e de ternura a dar luz a esta aventura de terrores literários. 
Bom Trabalho, de José Maria Covas, é a muito breve história de uma loja de decoração com produtos singulares. Deixa inevitavelmente uma certa curiosidade sobre a particularidades da loja, mas a concisão do conto tem também o efeito de intensificar o choque, o que torna tudo mais surpreendente.
Sonhei com uma Linha Vermelha, de Madalena Feliciano Santos, fala de um misterioso sonho com consequências devastadoras na realidade. Além de ser um dos contos mais longos do livro, é um dos que mais prolonga a aura de mistério, construindo uma base sobrenatural singular cujos contornos têm muito de inesperado.
Amor, de Patrícia Sá, conta a história da perda de um ente querido e da presença que persiste no local outrora habitado. Marcante sobretudo pela fusão de nostalgia e ternura com aspetos mais sombrios, trata-se de um conto com um cerne essencialmente inocente, mas também bastante intenso e cheio de tensão. 
Segue-se A Mais Bela Profissão, de Sandra Amado, história de um encontro fugaz de consequências dramáticas. Muito breve e escrito num registo bastante direto, sobressai acima de tudo pela capacidade de gerar tanta surpresa em tão poucas páginas. 
Ritos, de Vanessa Barroca dos Reis, fala da perda de uma esposa, dos rituais do luto e da sua consumação em formas inesperadas. Mais pausado do que os contos anteriores, e também mais introspetivo, tem na forma como explora a desorientação do luto, e também as suas facetas pessoais, a sua grande força. E, feito mais de pequenas perceções do que de acontecimentos dramáticos, acaba por surpreender também pela sua medida de serenidade. 
O Palco Vazio, de Susana Silva, fala do que parece ser um vago apocalipse e do consequente mundo deserto por onde alguém vagueia. Com uma voz muito própria e um registo algo ambíguo, trata-se de um conto construído à base de impressões, deixando por isso muito em aberto, mas também uma intrigante sensação onírica.
Finalmente, A Tradição, de Francisco Horta, conta a história de um marido com más notícias para dar à mulher e de uma sombria tradição que tem de ser cumprida a todo o custo. Particularmente eficaz na aura de mistério, mas notável também pela forma direta de narrar as coisas, sobressai pelo contraste e pela capacidade de surpreender. 
Com um conjunto diverso mas coeso de contos, registos bastante distintos mas sempre cativantes e uma bela conjugação de surpresas notáveis, a impressão que fica desta antologia é inevitavelmente muito positiva. Cada conto cativa à sua maneira, e são vários os que se entranham na memória. E assim, eis uma boa palavra para resumir este livro: memorável. 

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