segunda-feira, 14 de março de 2022

Canción (Eduardo Halfon)

Descendente de um avô libanês que não era libanês, e que foi em tempos sequestrado por guerrilheiros, um escritor participa num evento no Japão também sob uma identidade libanesa que talvez não lhe pertença verdadeiramente. E essa presença no evento serve-lhe de ponto de partida para revisitar memórias: de uma infância de leituras de sina, militares assustadores e cartas de despedida que nunca o chegam a ser à posterior busca da história do avô através daqueles que o sequestraram. Pelo caminho, vão-se esbatendo as linhas do tempo e da realidade. Afinal, como dizia o avô do narrador, a Guatemala sempre foi um país surrealista. Porque não haveriam de o ser também os seus habitantes?
Um dos aspetos mais cativantes deste livro é a forma como, nas suas cerca de cento e vinte páginas, abrange vidas inteiras de complexidades e mistérios. A história do avô do narrador é, naturalmente, a presença dominante, mas expande-se para a história da sua família, para o contexto dos países por onde passou e, naturalmente, para a história daquele que nos conta a história. Claro que, sendo tão breve, vive tanto de sugestões como de explicações efetivas, e é certo que fica todo um mundo de perguntas sem aberto. Ainda assim, há um equilíbrio delicado entre o dito e o sugerido, o que é contado e o que fica à imaginação, que acaba por assumir a forma de um registo algo enigmático.
Também a própria voz tem as suas singularidades. Oscilando entre diferentes períodos da linha temporal, entre perspetivas mais próximas e breves momentos de pura enumeração de factos, forma uma estrutura que talvez pudesse ser descrita como fragmentária, na medida em que vai saltando entre pedaços de vidas. Mas não é bem isso, pois há uma coesão que se vai revelando aos poucos e a ligação entre todos os elementos acaba por se tornar bastante evidente no fim.
Ainda um último ponto a salientar prende-se com o título do livro, que é também nome de personagem, mas não do protagonista. Canción é, aliás, uma presença curiosa, pois dado o seu posicionamento na história, tem uma grande importância em certos desenvolvimentos. O papel mais marcante desta figura está, ainda assim, na forma como serve de elo de ligação entre as diferentes fases da história e entre os diferentes intervenientes, ligando passados distantes à persistência das memórias do narrador.
Breve, mas surpreendentemente complexo em todas as suas facetas; enigmático, mas com uma estranha envolvência que confere à leitura uma fluidez muito natural; e equilibrado na sua conjugação de revelações e mistérios, de inícios e fins de vida, do que persiste e do que vai ficando pelo caminho, trata-se, em suma, de uma leitura maior do que a sua dimensão em páginas. E de uma voz que se entranha quase involuntariamente.

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