quarta-feira, 16 de março de 2022

Grande Turismo (João Pedro Vala)

Sentado na marquesa do consultório, à espera das temíveis palavras que o médico tem para lhe dizer, João Pedro Vala - narrador que é também autor, mas não exatamente, e é ainda protagonista de uma sucessão de vidas improváveis - dá por si a contemplar uma não muito longa vida inteira de fracassos. Sob o olhar das expetativas do mundo, carregando às costas uma vida que não reconhece muito bem e perdido na fronteira entre o real e o improvável, vai partilhando histórias em jeito de biografia intimista do que nunca aconteceu. E o que tem para contar... bem, é simultaneamente impossível e real, inconcebível e perfeitamente natural. Provavelmente um romance? Sim, provavelmente.
Se há algo que este livro nunca será é fácil de descrever. Porquê? Porque quase não há nada de linear em toda esta estranha viagem aos meandros da mente do narrador/autor/protagonista. Curiosamente, porém, é precisamente isso que o torna tão fascinante. Num constante esbater de fronteiras entre realidade e ficção, nenhuma identidade é assumida com solidez absoluta, nem mesmo a do enigmático João Pedro Vala desta história. E ora há momentos que parecem perfeitamente normais (pelo menos no início), ora há outros que, de tão improváveis que são, se tornam irresistíveis na sua peculiaridade. Veja-se, por exemplo, a ideia de ver a bola na internet em plena guerra colonial. Ou de um conjunto de aparentes rituais infantis que se tornam numa caçada muito séria. Ou ainda a alegada morte e ressurreição do autor/narrador/protagonista.
Tudo neste livro é feito de singularidades, desde os episódios inexplicáveis ao próprio registo do livro, com um sentido de humor também muito peculiar, pontuado por algumas referências a puxar para a nostalgia, e uma cadência nas palavras que parece ajustar-se à voz da... bem, da personagem, digamos assim. Mas o mais intrigante neste aspeto é a forma como, ao longo da leitura, vamos sendo transportados para a realidade do livro para nos vermos depois confrontados - e várias vezes - com a súbita lembrança de que há um autor a escrever estas coisas. Um autor que não dá voz apenas à sua personagem, mas também a outras capazes de emitir julgamentos sobre o seu percurso.
Ainda um último elemento curioso vem da teia de laços singulares que atravessa toda esta viagem. Não será de todo um livro sentimental, mas as ligações que persistem, as presenças que se repetem, acabam, ainda assim, por criar uma estranha sensação de proximidade. Mesmo quando as personagens não são propriamente do tipo que mais desperta empatia.
Tudo somado, o que fica é uma impressão de estranheza - mas daquele tipo de estranheza que se entranha, que fascina, que se grava na memória pela sua singularidade. E também de uma viagem marcante aos meandros de uma vida cativante e simultaneamente difícil de definir. Se vale a pena viajar por estas andanças? Oh, sim. Sem dúvida.

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